02/07/2010

Entrevista com Nelson Martins


Chama-se Nelson Martins, tem 37 anos, é formado em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e foi co-fundador e sócio da empresa de webdesign Nitrodesign, entre 1998 e 2004. Actualmente ocupa o seu tempo como webdesigner, ilustrador e cartoonista freelancer. E acaba de publicar em França o seu primeiro álbum, Tout sur les célibataires, nas Joker Éditions.

- Como chegaste à banda desenhada?
Nelson Martins -
Em miúdo, ler era para mim uma das actividades mais interessantes, em especial ler BD.
Muitos dos meus amigos da altura partilhavam esse gosto. Como tinha também o gosto pelo desenho, isso acabou naturalmente por levar à BD como forma divertida de criar e contar histórias.

- Porquê a opção por um traço humorístico, algo que é raro em Portugal?
Nelson Martins -
Isso terá sido influência do tipo de BD que sempre preferi ler. Comecei a ler os “clássicos” Patinhas, Astérix, Spirou e apesar de depois ter conhecido estilos mais afastados do humorístico, como Corto Maltese, Moebius (para dar alguns dos exemplos mais conhecidos) e diversos outros mais recentes, o estilo humorístico diverte-me mais e é esse que desenho com mais frequência. Mesmo que essa possa não ser a corrente predominante em Portugal. O género aventura também me agrada, assim como um mix de aventura com humor.

- Tinhas algo publicado anteriormente?
Nelson Martins -
Publiquei durante alguns anos em jornais regionais e suplementos de jornais nacionais, como o DN Jovem e o Correio da Manhã. Na forma de tiras ou de histórias de uma prancha.
Mais recentemente, participei em três séries de tiras de BD semanal para a internet (em co-produção com o Pedro Couto e Santos):
- “Os Especialistas”, para a revista online Digito.pt
- “País dos Sapos”, para o Sapo.pt
- “Os Especialistas”, para o Sapo.pt (canal de tecnologia)
A minha participação em fanzines resume-se a um caso pontual e em termos de álbuns, esta é mesmo a estreia.

- Como surgiu esta oportunidade de editar um álbum em França?
Nelson Martins -
Esta oportunidade, na verdade, resultou da decisão de fazer um álbum de BD, quaisquer que fossem as probabilidades de o publicar.
Os testemunhos de alguns autores e de outras pessoas ligadas à BD em Portugal levavam a crer que publicar em Portugal não era tarefa muito fácil.
De qualquer forma, por volta de 2004 comecei a discutir com um amigo meu dos tempos de faculdade (e também sócio co-fundador da Nitrodesign), o Pedro Couto e Santos, a ideia para um álbum intitulado “Lig e Mandu – os Crápulas da Montanha”, uma história de aventuras com humor à mistura.
Divertia-nos a ideia de fazer um álbum e parecia-nos que, pela diferença de estilo, teria hipóteses de ser publicado. Uma ideia a ir desenvolvendo à medida que a nossa actividade profissional permitisse.
Entre 2006 e 2008 o argumento começou a ser desenvolvido, depois esbocei cerca de 60 páginas e finalizámos algumas. Foi esse projecto que levei ao Festival Internacional de BD de Angouléme, um mercado com mais oportunidades do que o nacional.
No festival contactei uma grande quantidade de editoras e houve algumas respostas mais entusiastas, uma em especial por parte das Éditions Joker. Numa primeira abordagem as editoras avaliam quase exclusivamente o aspecto gráfico do trabalho e foi esse o feedback que recebi, ficando a história dos crápulas da montanha à espera de outro desenvolvimento.
De volta a Portugal recebi desta editora Joker o convite para a produção de 3 pranchas a partir de um argumento existente, a título de teste. A experiência correu bem e o projecto foi-me entregue.
O argumento é da autoria de Valéry Der-Sarkissian, um argumentista francês que se estreia também assim neste álbum.

- Em que moldes trabalhaste com o argumentista?
Nelson Martins -
O Valéry enviou-me o argumento em texto, com algumas indicações em relação ao layout.
O livro é uma sequência de gags humorísticos de uma prancha. Para cada prancha, o argumentista indica a quantidade de vinhetas e para cada vinheta a descrição da cena e os diálogos correspondentes entre os personagens. São indicações e funcionam apenas como tal, porque é necessário por vezes alterar essa planificação para melhor ilustrar o gag.
Para além disso enviou-me uma série de informações adicionais sobre a arquitectura do edifício do Tribunal Administrativo que serve de inspiração para o cenário onde decorrem a maioria dos gags, para definirmos mais solidamente o espaço da história.

- Como foram definidas as personagens?
Nelson Martins -
Em conjunto com o argumento, recebi uma descrição breve dos 6 personagens principais, três homens
(Henri, Philippe e M. Merriot) e 3 mulheres (Océane, Marion e Rani), todos personagens solteiros.
A descrição incluía uma sugestão dos traços físicos e de personalidade de cada um. (Ex: Henri - perdidamente apaixonado pela Marion, trabalha no balcão central de atendimento do Tribunal Administrativo. Lamenta não viver no século XIX.) A interpretação gráfica dos personagens ficou a meu cargo.
À medida que as pranchas vão surgindo, as personalidades de cada personagem vão-se definindo mais um pouco, de forma que desenhar um gag com um ou com outro personagem é diferente.

- Qual a maior dificuldade que tiveste?
Nelson Martins -
O projecto correu sempre bastante bem, incluindo a colaboração com o argumentista com quem estive sempre em contacto e foi sempre o primeiro a receber cada nova prancha.
A maior dificuldade foi mesmo conciliar os projectos de webdesign, que já tinha em curso, com a produção do álbum. Mas, com um trabalho redobrado, sobretudo nos 3 meses anteriores à entrega do álbum, pude acabar no prazo previsto.

- Houve pranchas recusadas ou que tiveste de modificar?
Nelson Martins -
Praticamente todas as pranchas foram aceites sem reservas, havendo apenas uma ou duas com o final ligeiramente alterado para reforçar a “punch-line”. Da capa é que tive de fazer algumas versões diferentes.

- Quanto tempo demorou a desenhar e colorir o álbum?
Nelson Martins -
O álbum teve início em Junho de 2009 e foi terminado em Abril deste ano. No entanto, pelas razões profissionais que referi, só nos últimos 3 meses pude trabalhar a tempo inteiro no álbum.

- Que resumo fazes desta experiência?
Nelson Martins -
A minha intenção inicial era recomeçar a fazer BD e progredir como desenhador e autor. Posso dizer que isso aconteceu; aprendi muito com a experiência sobre a criação de um álbum de BD e notei a evolução ao longo dessa experiência. E mesmo quando o trabalho redobrou na fase final do projecto, iniciar uma nova prancha foi sempre aliciante.
Também pude ver que é possível fazer da banda-desenhada uma actividade mais profissional do que inicialmente pensava, desde que haja o apoio de uma editora.

- Há alguma previsão do álbum vir a ser publicado em Portugal? Gostavas que isso acontecesse?
Nelson Martins -
Não há ainda previsão, mas com o primeiro exemplar em mãos, conto ir apresentar o álbum a algumas editoras portuguesas.
Gostava que o livro fosse publicado em português, a minha língua de origem. Para além disso seria também uma contribuição para o nosso mercado de BD, que precisa de mais actividade para cativar o interesse do público para este género de leitura.

- E agora, o que se segue?
Nelson Martins -
A intenção inicial da Joker é fazer deste livro o primeiro de uma série. No entanto, teremos de esperar para ver a reacção do mercado franco-belga.

- Que ambições tens dentro da BD? Que projectos gostavas de concretizar?
Nelson Martins -
Como já antes pensava e agora pude confirmar, é a prática envolvida nestes projectos maiores de BD que trazem experiência ao autor. Por isso gostaria de continuar a ter projectos do género, que apoiados por uma editora me permitam continuar a fazer BD de forma profissional e não apenas como hobbie.
Na BD e noutras formas de expressão artística, acho que o autor quer sempre evoluir e fazer coisas estimulantes. Gostaria de continuar a fazer BD que me divirta e inspire, assim como a quem a lê. Neste momento, enquanto aguardo a continuação da Joker, penso em formas de retomar a ideia original de “Lig e Mandu, os Crápulas da Montanha”.

(Texto integral da entrevista que serviu de base ao artigo publicado no Jornal de Notícias de 19 de Junho de 2010)

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