16/07/2010

Harvey Pekar (1939-2010)

As notícias dizem que Harvey Pekar faleceu segunda-feira passada. Foi encontrado morto pela sua mulher, Joyce Brabner, no chão da sua casa, em Cleveland, no Ohio. Possivelmente vítima de cancro da próstata, embora também sofresse de hipertensão e de graves crises de depressão.
Se na maior parte dos jornais, o acontecimento só merecerá umas poucas linhas, se pudesse, Pekar faria dele o argumento de mais uma das suas bandas desenhadas. Porque, como costumava dizer, “se me aconteceu o mundo tem que saber”. Mesmo que o mundo seja o micro-cosmos que lê os seus comics auto-editados primeiro, desde 1976, no catálogo da Dark Horse desde o início da década de 90. Este podia ser o lema de Harvey Pekar que, numa das suas páginas chega a afirmar: “Eu vejo as coisas desta maneira – qualquer coisa que não me mate pode ser a base para uma das minhas histórias”.
Mas será que a vida de Pekar tem algum interesse? Não, dizem alguns. Não passa da existência simples e vulgar de alguém pertencente à classe média baixa, durante 30 anos arquivista num hospital da cidadezinha de Cleveland, nos EUA. Ou sim, segundo outros. Por isso o seu comic é objecto de culto e até deu origem ao filme que hoje estreia em Portugal. Em resumo, “American Splendor” é um daqueles casos típicos que ou se ama ou se odeia...
E o seu título é, desde logo, enganador, pois Pekar mostra o “esplendor americano”, pelo seu pior lado, em oposição às tradicionais bandas desenhadas de super-heróis que glorificam tudo o que é “made in USA”. Porque o esplendor de Pekar é tudo menos esplendoroso. É um retrato nú e cru do seu dia-a-dia. Episódios soltos, isolados, cuja narrativa pode começar a meio e terminar em aberto, antes que se lhes adivinhe um “fim tradicional”. Por isso não surpreende que Pekar, pessimista, constantemente desgostoso com a vida, revoltado ou simplesmente indisposto (característica que tem vindo a suavizar-se nos últimos anos – os seus “declining years”, como o próprio os define), nos possa narrar uma discussão na mercearia, algo tão significativo como o determinar da rotina diária (despejar cestos de papéis, lavar roupa, arquivar fichas, de forma a reduzir ao mínimo os percursos em escadas), ou o simples descascar de uma tangerina (e o que fazer com os seus caroços!). Ou o seu casamento, o que presencia, a vida daqueles com quem se cruza, as suas presenças no popular talkshow televisivo "Late Night with David Letterman"... Ou, pegando na tal ideia de que “o que não me mata, pode ser tema de história”, o cancro que o afectou, narrado em “Our cancer year” (1994), uma novela gráfica de mais de 200 páginas, em que Pekar (inicialmente Joyce, a sua mulher), com arte de Frank Stack, relata a sua luta contra aquela doença, que o acometeu em 1990, e como a realização da BD o ajudou não só a sobreviver ao cancro mas também ao tratamento que teve de fazer, fortalecendo os seus laços conjugais.
Claro que há excepções à regra. Mas são poucas. Geralmente relatos musicais (Harvey Pekar é também coleccionador e crítico de jazz), aconselhamento de um livro (também faz crítica literária), casos que lhe foram contados e, mais recentemente, “Unsung hero”. Editada em 2003, desenhada por David Collier, é a história verdadeira de Robert McNeil, um negro que, ingenuamente se inscreveu no exército norte-americano, antes da maioridade, na altura da guerra do Vietname, que nos conta o seu dia-a-dia no meio de rotinas e combates, problemas de racismo e o relacionamento com os autóctones, de uma forma directa, serena, mas não isenta das emoções que só a vida real proporciona.
Se começou com Crumb ao seu lado, Pekar - que apenas escreve os argumentos fornecendo-os em forma de planificação primária ao ilustrador - nem sempre tem sido feliz nos desenhadores que encontra e “American Splendor” ressente-se disso. Se Crumb e Sacco, nomes grandes da BD, bem como Neufeld ou Zabel, são excepções àquela regra, outros dos que têm passado pelas páginas dos seus comics são mais ilustradores do que autores de BD, o que não permite que as narrativas se apresentem com toda a força e eficácia que os argumentos prefiguravam. Porque as narrativas de Pekar, às vezes divertidas, às vezes pungentes, sempre verdadeiras, são directas, embora por vezes palavrosas, de leitura agradável pela fluência da narrativa, pela forma como distribui o texto pelas vinhetas ritmando a leitura e também pela escrita fonética que utiliza. E foi por levar, desta forma, a vida real para a BD, elevando-a enquanto arte, que explica a importância (e o sucesso, relativo, à escala de uma BD marginal e independente) de “American Splendor”, mais a mais se atendermos à total ausência de sexo, violência, ficção ou qualquer forma de cedência aos gostos do público.
Desde 2009, iniciara na Internet The Pekar Project, um site criado em conjunto com outros criadores, com textos e bandas desenhadas auto-biográficas, que agora assumirá o cariz de um imenso memorial de um autor controverso, sobre quem Robert Crumb afirmou: "Yeah, o Harvey é um ego-maníaco, um caso clássico, um dedicado, compulsivo judeu louco... Mas, de outra forma, como é que ele poderia ter publicado tantos comics, quase sem dinheiro, completamente isolado do mundo da BD, constantemente a implorar ou a ameaçar artistas para ilustrarem as suas histórias? E distribuindo ele mesmos as revistas!? Só um ego-maníaco persistiria diante de tantos sofrimentos. Eu desenho para ele por dois motivos: primeiro porque adoro a sua forma de contar histórias, e segundo para ele não me chatear!".

(Versão revista e actualizada do texto publicado no Jornal de Notícias de 4 de Março de 2004, a propósito da estreia do filme “American Splendor”)

Sem comentários:

Enviar um comentário