23/06/2011

Ele foi mau para ela

Sem palavras – sem música
Milt Gross (argumento e desenho)
Libri Impressi (Portugal/Espanha, Abril de 2011)
155 x 170 mm, 272 p., pb, cartonado
16 € (14 € se pedido ao editor)

Resumo
Esta é a história de um grande amor entre um caçador e uma cantora de saloon, separados pelos métodos pouco honestos de um vilão sem escrúpulos, numa sociedade movida pelo dinheiro, a avareza e a ganância.
História contada em banda desenhada, num longo romance gráfico, sem palavras, que data de… 1930!

Desenvolvimento
Esta é uma história banal, pode dizer-se sem medo de errar. A história do caçador que socorre a cantora do saloon e se apaixona por ela. Parte depois, em busca de riqueza, aliciado por um sócio ardiloso, que explora o seu trabalho e foge com os lucros. Dizendo-o morto à noiva, casa com ela e partem para a grande cidade. Em sua perseguição, o caçador ultrapassa mil e um perigos até o desenlace final.
Uma história que, com maiores ou menores variações, já foi contada, na literatura e no cinema, em folhetins radiofónicos e até na própria banda desenhada.
Mas, possivelmente, nunca como desta vez, por Milt Gross. Em sequência gráfica narrativa sem palavras. E sem música! O que é mais surpreendente se atendermos a que se trata de uma obra de 1930, quando quase todos os “grandes” quadradinhos davam ou estavam para dar ainda os primeiros passos.
E, atente-se, esta obra, 80 anos depois, é de uma frescura imensa, inovadora na forma e divertida no conteúdo.
Traçada com um desenho nervoso, mais próxima do cartoon do que do estilo realista que em breve imperaria nos EUA, assenta também num registo humorístico que surge variadas vezes ao longo da trama, numa aproximação à comédia muda cinematográfica – “herdeira do cinema de Chaplin”, escreve Nuno Franco na introdução da obra – e do desenho animado iconoclasta que (na sua maior parte) estava para vir. O que não quer dizer que, pontualmente e de forma surpreendente no contexto, Gross não demonstre outras capacidades gráficas nalgumas vinhetas de traço mais realista.
O humor - sempre patente ao longo das pranchas – tem alguns apontamentos geniais, mesmo que por vezes contraste como o momento imediatamente anterior ou posterior.
É o que acontece logo na cena inicial do assédio dos lenhadores à cantora, interrompido com violência por uma faca que crava um braço na parede, que depois desemboca num combate divertido, que estabelece desde logo o tom de comédia do registo e que coloca o protagonista ao nível de um outro herói dos quadradinhos, o marinheiro Popeye, com quem tem diversos pontos de contacto: a grande força, a simplicidade, a ingenuidade, a disponibilidade para ser útil aos outros… Atributos que cativam o leitor e o colocam a torcer por ele.
Outro momento semelhante ao citado, surge quando o vilão declara o caçador morto e leva a cantora à suposta tumba onde ele se encontra (pp. 37-41), vendo o leitor, numa visão mais afastada de conjunto uma cena algo diferente. Na mesma linha, a antecipar um desfecho bastante cruel, depois da sucessiva repetição de uma cena, qual bailado imparável, é o pedido de emprego da cantora na grande firma (pp. 128-153).
De puro génio são também a cena no alfaiate (pp. 89-95), a perseguição no carvão (pp. 123-126), a chegada do herói ao hospital (pp. 189-196) ou o reencontro do vilão com a sua última conquista (pp. 210-219).
A utilização – quase sempre – de uma única imagem por página, inferior à página, em posições diferentes na página – foi a forma encontrada por Gross para marcar o ritmo que mais lhe convinha – quase sempre elevado, diga-se em abono da verdade, o que acentua a proximidade à comédia muda – embora seja plenamente capaz de, em momentos específicos, trocar essa opção por páginas com várias vinhetas que quebram o ritmo e obrigam o leitor a pausar a leitura para apreender tudo o que é transmitido. É dessa forma – simples sem dúvida, mas eficaz – que mostra o estado de espírito da cantora quando a sua paixão parte com o novo sócio na bela página 27 em que predomina o negro.
Aliás, o domínio que Gross demonstra da técnica narrativa é surpreendente, quer ao nível geral da planificação e da utilização de diferentes enquadramentos e pontos de vista, alguns bem arrojados, quer ao nível do pormenor gráfico, como quando recorre a pegadas no chão para mostrar o elevado número de pessoas presentes no saloon onde a cantora actua, logo na prancha inicial, ou quando enche de imagens um balão “musical”, para demonstrar a qualidade das suas capacidades canoras.
Do ponto de vista narrativo realce ainda para a forma como Gross gere a sua história – que poderia ter tido um final antecipado logo na página 86 ou, mais tarde, na página 200 – não fosse o acaso interpor-se em ambos os casos, prendendo o leitor, deixando-o suspenso do momento em que – finalmente – os dois apaixonados se reúnem para sempre.
Á par do “grande romance americano” que narra com mestria, Gross aproveita para traçar um retrato da sociedade norte-americana do início do século passado, onde os grandes espaços (de certa forma ainda) conviviam com a chegada (acelerada) da civilização e da indústria, uma sociedade onde o dinheiro, o lucro, a ganância (já) imperavam, onde um cancro como o vício do jogo já ditava as suas leis e onde muitos – como o vilão da história – rapidamente ascendiam à fama (social) para mais depressa ainda caírem ainda mais fundo do que estavam antes. Mas onde, também, o trabalho era recompensado tal como as boas acções, o esforço permitia subir na vida, os bons (ainda…) ganhavam sempre…

 A reter
- A obra em si. Pela concepção, pelo ritmo, pela forma como está narrada, pelas soluções encontradas, pela forma como transmite emoções, pelo humor… Integralmente.
- A forma como a história prende, obrigando a ler o livro compulsivamente, de um só fôlego. Eu tive o “azar” de o começar a folhear um dia, à 1h43 da madrugada, com as consequências que se adivinham…
- O respeito de Manuel Caldas pela obra original – leia-se a introdução na página VI – em termos de paginação do livro, respeitando as opções de leitura e de ritmo que o criador – conscientemente ou não – fez.
- A qualidade da edição da Libri Impressi. Mais uma vez.

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