Nas suas origens – falamos dos Estados Unidos no princípio
do século XX – as bandas desenhadas nasciam nos jornais, em tiras diárias ou
pranchas dominicais que os leitores liam avidamente. Depois, surgiram as
revistas que durante gerações foram esperadas avidamente pelos seus leitores. Tinham
a vantagem de mais rapidamente concluírem as histórias e de poderem ser
coleccionadas. Em Portugal, títulos como O
Papagaio, O
Mosquito, Mundo
de Aventuras, Cavaleiro
Andante ou Tintin,
encheram os sonhos de gerações e tornaram conhecidos - ou até famosos – muitos
dos seus autores.
Era nas suas páginas que os novos autores mostravam uma
ilustração ou uma pequena história desenhada, em busca de afirmação e de mais
altos voos. Mais tarde viria a auto-edição, em fanzines, fotocopiados e
distribuídos de mão em mão, limitados ao círculo de amigos e pouco mais.
Hoje, decorridas várias décadas, as publicações regulares em
papel quase desapareceram em Portugal, como noutros países e é cada vez mais
difícil os novos autores conseguirem espaço nelas para se mostrarem e crescerem.
Num mundo dominado pelas novas tecnologias, não surpreende
que elas venham a substituir o papel nesta função de lançamento e divulgação de
projectos aos quadradinhos. As vantagens, são muitas: controle sobre a criação,
publicação imediata, facilidade de divulgação, reacções imediatas dos leitores…
O que não impede que a posterior “edição de um livro” seja
“realmente um sonho”, como confidenciou Sara-a-dias, aliás Sara Osório, autora
do livro “A minha mãe acha que fui trocada à nascença”, lançado no passado dia
6 de Março, pela Ideia Fixa.
Novela autobiográfica que traça com humor o percurso da
autora desde (antes d)a nascença até à actualidade, teve nas “redes sociais uma
óptima rampa para chegar a mais pessoas” e tem sido através da sua página do Facebook que
tem conseguido outros “trabalhos como freelancer”. Foi assim, também, desafiada
“a criar o primeiro livro, feito em tempo recorde”, com conteúdos originais,
que acabaria por sair apenas “um ano e meio depois”, por uma editora diferente
da inicial, que permitiu que sentisse “o alívio de missão cumprida". (ver entrevista
completa já a seguir)
Percurso equiparável teve “As crianças são muito infantis”,
que está à venda desde a passada sexta-feira, dia 13. É um livro baseado nas
conversas entre o autor, Fernando Caeiro, e os seus filhos de 9,9 5 e 3 anos
nos percursos casa-escola e escola-casa, a bordo de uma carrinha tipo “pão de
forma”. Como factor contra, a repetição da mesma imagem – com ligeiras
alterações, de pormenor mas significativas, o que torna a leitura em livro algo
desmotivante, embora o modelo até funcione online. Apesar disso, o tom
divertido e ternurento dos diálogos, reais como podem asseverar todos os que têm
filhos e que certamente se vão rever nestas conversas, funciona como um motivo
para continuar página pós página.
Sinal dos novos tempos, o argumentista e a ilustradora,
Filipa Marques, não se conhecem pessoalmente, nunca ouviram “sequer a voz um do
outro”, são “literalmente uma parelha do Facebook”.
Fernando Caeiro sempre teve “esperança de que este projecto
desse origem a algo maior (ou diferente) do que uma simples página de Facebook”,
mas “quase não chegou a ser um sonho” porque não houve tempo para isso. Na verdade,
conta ele, “a
página do Facebook tinha apenas um mês” quando surgiu o contacto da “Bertrand,
a comunicar o interesse em passar as histórias a livro”. Por isso, “durante os
meses seguintes, o objectivo foi consolidar a página e os seus conteúdos para
tornar o projecto editorial ainda mais apetecível”.
O livro agora editado contém cerca de “30% de inéditos”
porque o objectivo era que fosse “uma mais-valia em relação ao on-line”. (ver
entrevista integral no final deste texto)
Estes não são casos únicos no nosso mercado editorial,
seguindo o que acontece cada vez em maior escala noutros países, que há alguns
meses acolheu A Criada Malcriada e os
Psicopatos.
A Criada Malcriada,
obra de autor anónimo, com 75 mil likes no Facebook, lançada em livro pela
Objectiva, mostra o quotidiano de uma senhora abastada e da sua criada, com a
diferença social claramente demarcada e explorada com um humor politicamente
incorrecta, que frequentemente serve para comentar a actualidade.
Quanto a Psicopatos –
Entre loucos quem tem juízo é pato, criados por Miguel Montenegro, o primeiro
autor português que trabalhou para a Marvel, aborda as ciências psicológicas,
com os seus dogmas e excessos, verdades absolutas e contradições, exploradas
com sarcasmo num universo de patos, numa edição do ISPA.
Para as editoras, este tipo de apostas são relativamente
seguras, uma vez que as obras já são conhecidas antes de o livro sair, já foram
testadas e até têm seguidores (7000 no caso de Sara-a-dias, cerca de 6000 no
que respeita a As Crianças…). Por
outro lado, as páginas em que nasceram e a rede de “amizades” por elas
desenvolvidas são garantia de uma eficiente divulgação – online – que para mais
é gratuita.
Mini-entrevista:
Sara-a-dias
As Leituras do Pedro -
Como surgiu a possibilidade do salto do Facebook para o livro?
Sara-a-Dias - De
facto o facebook, tumblr, instagram, no geral, as redes sociais têm sido uma
óptima rampa para chegar a mais pessoas e, sobretudo, para as a sensibilizar
para este mundo da ilustração.
O universo Sara-a-dias tem sido felizmente partilhável
durante estes 3 anos e foi através da sua página nestas
plataformas que consegui promover o meu trabalho e, dos posts sobre peripécias
do quotidiano, evoluí para trabalhos mais personalizados para os meus
seguidores (o que me fez estar próxima e permitir grande interacção com quem me
acompanha) e para trabalhos como freelancer (como os vídeos para o Público; para a Pedigree; ilustração de livros para a
Alêtheia: aqui e aqui,
entre outros).
Com este trajecto, fui desafiada a criar o meu primeiro
livro feito em tempo record, no entanto, a editora que inicialmente me pediu o
livro não teve meios financeiros para avançar com a edição. Um ano e meio
depois, apresentei-o à Editora Ideia-Fixa e finalmente senti o alívio de
"missão cumprida".
As Leituras do Pedro -
A edição em livro era um objectivo, um sonho ou foi apenas uma oportunidade que
surgiu?
Sara-a-Dias - Cresci
sempre a ler os livros do Tio Patinhas, da Turma da Mónica, do Mickey e na
altura tentava reproduzir os desenhos à vista e criava as minhas próprias BD's.
Hoje em dia, leio mais graphic novels e perco horas a analisar cada
página que, a cada leitura, desvenda tantos pormenores fantásticos.
Por isso, sim. A edição de um livro era realmente um sonho.
No início deste meu percurso, antes mesmo de ser Sara-a-dias, fiz um primeiro
trabalho de ilustração infantil para a Planeta Júnior, mal saí de um curso de
Design pós-laboral. Achei que tinha descoberto o que realmente queria e lutei
por conseguir trabalhos nesta área.
Criei textos para ilustrá-los, participei em concursos, e
depois comecei a abrir os meus horizontes assim que me entreguei à Banda
Desenhada, ao Cartoon e a este mundo "a-dias". Quando surgiu esta
possibilidade de realmente conseguir publicar o meu livro, senti-me uma
felizarda por me terem dado esta oportunidade.
E agora vejo o meu livro nas estantes das livrarias, mesmo
ao lado de ilustradores que reconheço e tenho vontade de pegar num banco e
ficar ali a adorá-lo.
Mini-entrevista:
Fernando Caeiro
Fernando Caeiro –
Uma nota prévia: Tu não perguntas mas eu digo na mesma porque podes achar graça
a este detalhe que é muito facebookiano, e por isso pode ter interesse para o
teu artigo. Eu e a minha adorada ilustradora não nos conhecemos pessoalmente;
somos literalmente uma parelha do facebook.
Eu vivo em Lisboa e ela no Porto, e responde pelo perfil de
Laura Palmer. Durante muitos meses fomos solidificando a nossa amizade sem que
eu soubesse sequer como ela se chama. Só agora, por causa do livro, é que a
Laura Palmer assumiu o seu nome verdadeiro e até fez um auto-retrato para a
"galeria de autores" do livro. Hoje eu já sei como é que ela se chama
e até temos os números de telefone um do outro mas nunca falámos; nunca ouvimos
sequer a voz um do outro. Comunicamos exclusivamente por e-mail, sms e
mensagens de facebook.
E apesar de já saber o nome dela, continuo a referir-me a
ela (até nas conversas cá em casa) como "a minha Laurinha" - somos de
facto "apenas" amigos de facebook, apesar de para este
"apenas" ser muito relativo porque a minha adoração é pública. Posto
isto, vamos às respostas...
As Leituras do Pedro -
Como surgiu a possibilidade do salto do Facebook para o livro?
Fernando Caeiro - Foi
um verdadeiro conto de fadas. A página tina apenas um mês quando fomos
contactados pela Joana Neves, uma editora do grupo da Bertrand, a comunicar-nos
o seu entusiasmo e interesse em passar as histórias a livro.
Nessa altura nem
sequer havia massa crítica para editar o que quer que fosse, e durante os meses
seguintes o objectivo foi consolidar a página e os seus conteúdos para tornar o
projecto editorial ainda mais apetecível. Depois foi esperar pelo momento
certo, escolher as melhores tirinhas (as que tiveram mais adesão) e fazer 30%
de inéditos porque sempre quisemos que o livro fosse uma mais valia em relação
ao on-line. O dia do pai acabou por fornecer o pretexto e o livro começou a ser
vendido no dia 13 de Março.
As Leituras do Pedro -
A edição em livro era um objectivo, um sonho ou foi apenas uma oportunidade que
surgiu?
Fernando Caeiro - Quando
comecei a escrever achei sempre que o modelo podia ter interesse.
O facto de eu ser pai (quando a maioria dos blogs e páginas de Favebook são de
mães) e de a página ser assumidamente humorística (em vez de conselhos sobre
educação e paternidade, por exemplo), tornavam-na diferente de muito do que se
vai vendo na net.
E o facto de as tirinhas serem de consumo rápido (por oposição a um texto,
mesmo que seja muito bem escrito) e autónomas umas em relação às outras, também
facilita a propagação no ambiente do Facebook.
Também há um outro factor importante: aquilo são mesmo as
nossas caras e os nossos nomes e isso permite uma empatia maior com os
leitores. Se tivéssemos criado personagens fictícias, a piada podia estar lá
mas não se criava uma relação de afectos tão evidente com a comunidade que
segue a página.
Aqui as ilustrações da Filipa da Rocha Marques tiveram um
papel preponderante porque não só são lindas como são fiéis às nossas caras.
Posto isto... eu sempre tive esperança de que este projecto
desse origem a algo maior (ou diferente) do que uma simples página de Facebook.
Mas quase não chegou a ser um sonho porque a Bertrand não deu tempo e
transformaram-no logo em oportunidade.
(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de
10 de Março de 2015, para o qual foram feitas as entrevistas aqui reproduzidas)
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