27/06/2017

Scalp

O western não morreu







Se alguns davam o western como morto e enterrado - num processo de ‘selecção natural’ em que Tex constituía uma (bela) excepção - os últimos anos parecem querer contrariar os vaticínios dos ‘abutres’.
Na verdade, na banda desenhada - como no cinema - têm-se multiplicado os relatos - muitos deles aliciantes e desafiadores - neste género, sejam novas séries, como Duke, de Hermann e Yves H, Undertaker, de Xavier Dorison e Ralph Meyer, ou Stern de Frédéric Maffre e Julien Maffre (ambas com a curiosidade de serem protagonizadas por cangalheiros), seja a continuidade de outras que pareciam suspensas, como Gus, de Christophe Blain. Há também a considerar as (divertidas e conseguidas) homenagens de Matthieu Bonhomme e Guillaume Bouzard a Lucky Luke, respectivamente com L’Homme qui tua Lucky Luke e Jolly Jumper ne répond plus.
Ou, a um nível completamente diferente, este Scalp, um relato corrido feito de diversos episódios soltos que traçam o retrato de John Glanton, Texas Ranger durante a guerra américo-mexicana e depois mercenário (e caçador de escalpos) à cabeça de um bando de assassinos de índios.
Arrancando no Arkansas, em 1830, com uma narrativa tradicional sobre a avareza, desenrola-se maioritariamente no Texas, então ainda mexicano, e permite assistir a alguns momentos marcantes da sua história como a luta pela independência do México e posterior junção aos futuros Estados Unidos, a formação dos Texas Rangers, ou a passagem de figuras históricas que marcaram aquela época - e posteriormente o imaginário de muitos leitores de quadradinhos! - como Jim Bowie ou  Davy Crockett, que balizam a narrativa principal que se centra em John Glanton.
Um homem do seu tempo, admirado com temor por alguns, tolerado por outros, odiado por muitos mais, soube fazer prevalecer a sua natureza semi-selvagem e o seu carácter violento e amoral numa época em que as armas falavam mais alto e em que só os fortes e impiedosos sobreviviam.
Isto não faz de Scalp um relato heróico - longe disso - nem uma ode a um homem da História - cujas acções violentas afastam o leitor de sentir qualquer empatia com ele - mas tão ‘só’ - e este ‘só’ é bem relativo - uma reconstituição tão competente quanto incómoda da vida de um homem que num local e num tempo determinados marcou ou, mais do que isso, fez acontecer alguns momentos da História da que viria a ser a nação mais poderosa do mundo.
Um homem que viveu uma vida de excessos, com ferocidade, violência e desprezo pelos outros seres humanos, muitas vezes na fronteira entre a normalidade e a loucura, atormentada pelos fantasmas das vítimas de violação, arranque dos escalpos ou assassínios, sinais incontornáveis da brutalidade da expansão branca em território americano, traçada de forma impressiva pelo traço semi-indefinido de Hugues Micol que se a espaços torna mais custosa a leitura, em termos plásticos apresenta várias pranchas muito bem conseguidas graças à forma como joga com os contrastes entre o branco do papel e o negro da tinta, alternando com igual competência e poder cenas na natureza ou em meio citadino, exteriores ou interiores, violentas ou pacíficas, públicas ou íntimas…
Para além disso, o grafismo adoptado, ao sugerir mais do que mostrar o que é contado, propicia ao leitor, em função da sua capacidade interpretativa quanto do seu lastro cultural e social, uma função activa no desfrute desta obra, pois é ele que define, mesmo que subconscientemente aquilo que ‘vê’, que ‘sente’ e quanto se permite ‘desfrutar’.

Scalp
Hugues Micol
Futuropolis
França, Janeiro de 2017
239 x 335 mm, 192 páginas a preto e branco, capa cartonada
EAN : 978-2-7548-1207-8
28,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Para quem reclama de 20euros por 244 páginas, tem aqui 28 por 192 e editado num país em que a edição de BD é algo trivial e em grandes quantidades.

    Agora mais a sério, há uma questão relativamente engraçada de, (pelo menos em BD), apenas os Europeus é que lhe dão continuidade. E já agora, com obras excelentes, como sejam Blueberry (mais antigo) ou o referido Undertaker (recente) e com a continuade perene de Tex inclusive com direito a clube de fãs numa cidadezinha perdida no meio de Portugal.

    Agora mais sobre a obra em si e apenas com base no teu texto e nas imagens disponibilizadas, não é coisa que me atraia.
    Mas ainda bem que não gostamos todos do mesmo.

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    1. "num país em que a edição de BD é algo trivial e em grandes quantidades" mas em que as tiragens são cada vez menores...
      E sim, pco69, "ainda bem que não gostamos todos do mesmo", dos leitores aos... editores!
      Boas leituras!

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