22/09/2017

Os Trilhos do Acaso

 
Fascinados sem interesse

O que têm em comum uma banda desenhada sobre produção de vinho e a criação de BD e outra sobre a participação de espanhóis na II Guerra Mundial? Que é como quem diz: que têm em comum Os Ignorantes e Os Trilhos do Acaso?
A resposta é bem simples: a capacidade de os autores seduzirem completamente o leitor com uma magnífica obra sobre temáticas que, a priori, (nos) interessam pouco ou nada.
Tal como Davodeau noutras alturas - como no soberbo Cher pays de notre infance - Paco Roca já o havia feito, por exemplo, em O Inverno do Desenhador, sobre a situação dos artistas espanhóis na década de 1960, e volta a fazê-lo agora. Com mais força, possivelmente, porque a temática é mais universal, mas também porque a abordagem é (ainda) mais humana.
Baseado nas memórias de Miguel Ruiz, um dos últimos espanhóis vivos (à altura da preparação deste livro) que participaram na libertação da França, ocupada pela Alemanha nazi, Roca constrói um relato profundamente tocante, centrado nas dificuldades e nas carências que passaram milhares de patriotas espanhóis ao longo de quase uma década, obrigados a fugir da sua terra natal por terem participado na Guerra Civil espanhola do lado contrário aos vencedores, forçados - pelas circunstâncias, mas não só - a combaterem numa guerra que não era sua, mas que com eles levaram o sonho - a utopia? - de uma Espanha - uma Europa? - livre de ditadores e ditaduras. Sonho que os guiou, os alentou, os manteve vivos, os fez ultrapassarem-se.
A narrativa de Roca vai alternando entre a longa conversa/entrevista ao sobrevivente com a ilustração dos factos que ele vai narrando. Com diferenciação gráfica entre um e outro - e a presença do autor naquelas páginas - esta opção serve não só para atenuar a inevitável mas diluída carga histórica e/ou um registo de alguma forma excessivamente documental, para reforçar a vertente humanista do relato e também para contar duas histórias ao mesmo tempo.
A pessoal, de Miguel - e de muitos dos seus companheiros - com todas as implicações passadas e actuais, que só ao longo das páginas vamos descobrindo e percebendo, conforme o próprio Miguel finalmente aceita muito do que lhe aconteceu e a importância que a sua vida teve - para si mas também para muitos outros -  até ao desfecho que desvenda o mistério que se estende ao longo das mais de três centenas de páginas desta narrativa.
E a global, com a história da formação e dos feitos da famosa companhia El Nueve, formada quase exclusivamente por ex-combatentes da Guerra Civil espanhola, e (uma parte importante d)a História da própria II Guerra Mundial em si.
Ambas, no entanto, sob o signo do ser humano, daquilo que o move e motiva, dos seus muitos sonhos - e dos desencantos que eles (quase) sempre proporcionam, da sua capacidade de lutar pela vida - ou de deixar de fazê-lo…

Os Trilhos do Acaso, partes 1 e 2
Paco Roca
Levoir/ Público
Portugal, 15 e 22 de Setembro
170 x 240 mm, 160 p., cor, capa dura
9,99 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Pedro Ferreira26/9/17 08:58

    Na sargeta da história encontram-se heróis esquecidos, que com eles levaram para o túmulo as suas vivências. Paco Roca soube resgatar uma “memória” esquecida e presentear-nos com mais um álbum cheio de qualidades. Roca é um excelente narrador, capta as emoções e constrói uma história magnífica.
    É difícil escrever para enaltecer uma obra com tanta quantidade de nuances, pausas emocionais, voltas emocionais, e qualidade aliada. Apenas refiro a curiosa inversão do esquema tradicionalmente usado para os flashbacks, onde as conversas entre o autor e a personagem principal (Miguel Ruiz) são a preto e branco e as recordações do antigo combatente a cores
    Livro que capta e convida à reflexão……é um convite para não parar de sonhar…..lutar pelos seus sonhos…….valores e pela liberdade

    Essencial nas prateleiras de qualquer pessoa minimamente interessada e atenta àquilo que a rodeia.

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  2. Pedro Ferreira,
    Mais uma vez obrigado pela partilha.
    Esta obra é sem dúvida um dos grandes títulos desta colecção.
    Boas leituras!

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