07/02/2019

Julia: La convención ensangrentada

Forma e conteúdo





O que é mais importante: a forma ou o conteúdo?
Se a questão é recorrente, a resposta é menos evidente, desenganem-se aqueles que de imediato responderam 'conteúdo'.
Porquê a pergunta? Surgiu-me a propósito de mais uma bela edição da Panini espanhola de uma obra original da Sergio Bonelli Editore. Na caso, os inquéritos da adolescente Julia Kendall, futura criminóloga de Garden City.
É uma edição com bom papel, em capa (muito) dura, pesada, de dimensões generosas - superiores até ao original - e a cores - neste caso, tal como viu a luz em Itália em 2015 e 2016 - e dei por mim a compará-la com os volumes actuais da brasileira Mythos, duplos em relação àqueles em que li estes inquéritos pela primeira vez.
A comparação é injusta, reconheço, os contextos de edição de uma e outra são díspares. Como díspares - e dificilmente poderiam ser mais, são as formas que acolhem o mesmo conteúdo... A edição espanhola tem o quádruplo do volume da brasileira, pesa 7 vezes mais. E custa mais do dobro do preço (da sua venda em Portugal).
Mas, apesar deste último facto, acredito que a maioria dos leitores portugueses - espanhóis, franco-belgas... - optariam por uma edição similar à da Panini. Porque, nestes mercados - europeus, ocidentais... - para os leitores que maioritariamente os compõem, a forma é muito importante. O objecto livro é relevante. E a apresentação do conteúdo também.
[Por isso tantos leitores portugueses resistiram tanto tempo a ler Julia nas pequenas edições brasileiras, nos bons tempos em que elas eram distribuídas por cá...]Tenho (re)lido com regularidade revistas da minha adolescência e surpreendo-me sempre como na época dava pouca importância à má impressão, às deficientes traduções, aos cortes e remontagens, à inqualificável legendagem... Possivelmente porque os termos de comparação eram poucos, fracos ou inexistentes. Hoje em dia, esse tipo de publicações, dificilmente teriam lugar. Como os formatinhos Marvel, para apontar outro exemplo.]
Por tudo isto, possivelmente, a colecção Universo Tex é em capa dura - quando a lógica talvez indicasse uma capa mole...- , a colecção Bonelli, da Levoir/Público, optou pelo formato livro de capa dura em vez de clonar o formato menor em capa mole da Bonelli. Opção similar à tomada agora pela Panini espanhola.
Porque, um formato maior, um papel melhor, uma impressão mais cuidada, uma legendagem criteriosa e fiel ao original, uma boa tradução, alguns extras no final que ajudem a compreender melhor a obra e/ou a sua génese, acabam por ser importantes para o conteúdo em si. Para a forma como ele é apresentando ao leitor. Para a forma como o leitor o valoriza mais, desta forma.
Então, forma ou conteúdo?
Apesar de tudo o que atrás fica escrito, conteúdo, sempre, sem dúvida. Mas a forma é também - cada vez mais? - muito importante.

E se já escrevi largamente sobre a primeira, vou agora falar um pouco do segundo.
Este volume, La convención ensangrentada, reúne os dois primeiros números de Julia Speciale, em que Berardi fez os leitores retroceder no tempo para conhecerem a jovem Julia do tempo em que terminava os estudos universitários e iniciava a sua carreira como (futura) criminóloga, ao lado do professor Cross.
A par dos inquéritos, das inquietudes que já sentia, da insegurança que sempre manifestou, das dúvidas e ansiedades próprias da adolescência, do ambiente familiar, ainda com a irmã Norma e a avó, mas também das convicções fortes que sempre foi capaz de assumir depois de ter certeza do que viu ou intuiu, a jovem Julia sofre igualmente pela paixão juvenil que sente pelo seu mentor. E que se apresenta mais forte e explícita no relato inicial que dá título ao livro, quando acompanha Cross a uma convenção de criminólogos, onde o aparecimento de um cadáver coloca as autoridades perante mestres na arte de desvendar - e também de cometer? - crimes. A par da descoberta do culpado, a luta interior da jovem, dividida entre a razão e o coração, ocupa uma parte importante do relato e adianta indicações que justificam alguns dos seus comportamentos futuros.
Relativamente a El Caso del Luna Park, o contexto e o local do crime são diferentes, assemelhando-se, aparentemente, a um dos cenários clássicos da literatura policial: o crime em espaço (quase) fechado - aqui mais fechado em termos de uma comunidade virada para si mesmo, mais do que o espaço físico em si. Os protagonistas, involuntários, são os membros de uma comunidade ambulante, que monta e desmonta um parque de diversões aqui e ali, pouco querida dos habitantes da grande cidade - que tanto vêem neles os transportadores de sonhos como a fonte de todos os males do mundo - e objecto de apoio ou rejeição por jogos políticos raramente evidentes.
Num caso e noutro, Berardi, como sempre, centra-se mais nos aspectos humanos e emocionais, do que nas acções criminosas ou nas razões que as motivam, para nos guiar em mais dois mergulhos pelo mais íntimo dos seres humanos.

Julia: La convención ensangrentada
Berardi, Mantero e Calza (argumento)
Marinetti e Piccoli (desenho)
Panini Comics
Espanha, 24 de Janeiro de 2019
195 x 259 mm, 264 p., cor, capa dura
22,00

(pranchas referentes à edição original italiana, recolhidas no site da Sergio Bonelli Editore; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

7 comentários:

  1. A questão do formato e do preço, também tem a ver com o público consumista das obras. Porque dizer que os leitores ocidentais preferem este tipo de edições, é presumir que esses leitores "têm" dinheiro para os comprar.

    Só terá dinheiro para os comprar, uma franja da população com vida já estabelecida. Ou seja, já de maior idade.
    E na verdade, o futuro da BD (e não falo de mais nada), deveria ser acautelado com edições mais populares e por arrasto, mais baratas, como foram referidas as tais "pequenas edições brasileiras".

    Olhando para as prateleiras de uma Fnac qualquer, (mero exemplo), constato que direcionado a camadas mais jovens, basicamente há apenas Manga.

    E com o desaparecimento da Goody e das edições disney e comics em revistas mais baratas que os albuns em capa dura, não me parece que o futuro da BD a 10, 20 anos, se afigure muito risonho em termos de edição/venda.

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  2. O Xico Manuel disse uma grande verdade.

    Mesmo as edições "mais baratas" como as da G-floy, Salvat, Levoir, custam dinheiro, sensivelmente mais de 10€.

    A minha banda desenhada começou no formatinho brasileiro, na revista Tintim portuguesa, no Spirou, edições acessíveis que eu comprava com a mesada ou o meu pai quando comprava o jornal, por pouco dinheiro podíamos ler várias histórias por edição, em continuação geralmente na semana seguinte ou no mês seguinte.

    A extinção das edições que apareceram nos últimos anos vieram preencher uma lacuna importante na divulgação de BD em língua portuguesa, agora criou-se um vácuo e isto é mau.

    Nem falo aqui de coleccionismos, estas edições são o ponto de partida para voos mais altos.

    Mesmo nos tempos da ditadura e antes de eu nascer, havia edições regulares, como o Cavaleiro Andante, Mundo de Aventuras, Jornal do Cuto, revistas de terror diversas, romance, etc...

    Vão dizer que os putos preferem estupidificar a jogar consola, não é bem assim.

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    1. Eu também gostava que houvesse BD mais barata disponível e lamento o fim das revistas Disney e Marvel da Goody, também por esse motivo.
      Cresci com revistas, aprendi a gostar de BD nelas e, apesar de achar que a Tintin era na altura muito cara, havia muita oferta a preços populares.
      Mas a verdade é que hoje em dia os tempos são outros - pelo menos no mercado ocidental europeu (se é que isto existe) - e muitos dos leitores preferem boas edições mais caras, a edições populares.
      Em muitos casos há a convivência de ambas. Em Itália, por exemplo, na Bonelli, onde as revistas tradicionais originam depois volumes em capa dura ou, de forma díspar, no Brasil, onde a Mythos começa a oferecer a mesma edição em formatos - e a preços... - diferentes, a exemplo do que a Panini chegou a fazer com as edições de banca Marvel, disponibilizadas em versões com papel diferente...
      Boas leituras!

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    2. Para Disney, para Marvel, DC etc.. sei que há direitos envolvidos.

      Pessoalmente não me importava que alargassem a oferta Bonelli de edições baratas pois penso que haveria receptividade do público para Dampyr, Dylan Dog, Nathen Never, etc... fora as Julias e Tex que caem de vez em quando e às mijinhas das edições brasileiras.

      Nem tudo é de qualidade mas podia ser um best of das personagens mais interessantes e populares, devem existir centenas, milhares de histórias disponíveis.



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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Mythos começa a oferecer a mesma edição em formatos - e a preços... - diferentes, a exemplo do que a Panini chegou a fazer com as edições de banca Marvel, disponibilizadas em versões com papel diferente..."

    A Mintos já não era barata nem nos formatinhos pb que eram overpriced quando haviam nas bancas daqui imagino nos formatoes de luxo hc tipo Juiz Dread,a ultima barata e com preços populares foi os preços congelados da Abril/cj vs Abril Jovem brasil,desde ai so a Devir tentou,e não durou muito.Desde ai so os Volumes 1s de Star Wars,Marvel/Levoir e Salvat.

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  5. OS formatinhos da Mythos são importados, daí serem caros.

    Falo em edições portuguesas de pequeno formato da Bonelli.

    O que a Bonelli em de bom é ter personagens e histórias para todos os gostos e olha lá, seria uma lufada de ar fresco ter algo que não seja super-heróis.

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