Homem-Aranha: O mal no coração dos homens

O mal à vista de todos

Se há uma evolução evidente - nas formas narrativa e gráfica e nas temáticas - ao longo da história da Marvel, raramente uma edição se atreveu a ir tão longe na abordagem a temas tão controversos e sensíveis como acontece neste livro.

Com uma gestação complicada - a mini-série original de 6 números arrancou em 2002 e só foi concluída em 2005 - O mal no coração dos homens aborda, de uma forma a um tempo explícita mas contida, dois flagelos da sociedade - de então, mais encobertos, como da actual, onde as denúncias são mais e mais visíveis: os abusos sexuais infantis e a violência sobre as mulheres, na forma extrema da violação.

Com uma aposta inicial muito evidente na sensualidade da Gata Negra/Felícia Hardy - quantas vezes a Marvel mostrou uma das suas (belas) mulheres tão demoradamente no chuveiro…? - a narrativa arranca com o regresso desta última a Nova Iorque, em busca de uma amiga desaparecida. O inevitável (re)encontro com Peter Parker/Homem-Aranha, a evocação do tempo que viveram juntos, a percepção de que os sentimentos mútuos não desapareceram, cria neste início um clima de tensão sexual que (já) apontava a história a uma faixa etária superior à habitual - e também a um leitor mais exigente.

A procura da amiga de Felícia conduzirá os dois parceiros fantasiados numa investigação - a componente policial é outro dos tópicos fortes da primeira parte da obra - que os levará até a um misterioso Sr. Brownstone, traficante da moda junto dos famosos, por razões só mais tarde desvendadas mas de importância crucial para o desenvolvimento da história.

O tom apesar de tudo ligeiro da primeira parte deste livro - correspondente à publicação inicial nas datas previstas - vai mudar radicalmente nos três capítulos finais, que Kevin Smith, assoberbado pelos seus projectos cinematográficos, só escreveu três anos mais tarde, com o foco a centrar-se, então, menos na investigação e na perseguição dos criminosos, e mais na violação e em abusos sexuais infantis cujas consequências e sequelas ainda se repercutem no presente de mais do que um dos protagonistas. A esta temática mais adulta corresponde também uma narrativa mais densa, em pranchas mais preenchidas e de tom mais realista, em grande parte expurgadas dos elementos e das planificações típicas do super-heróis.

Belo exemplo de como ‘até’ uma história de super-heróis pode abordar temáticas delicadas de forma credível e consistente, este O Mal no Coração dos Homens foi uma bela surpresa aquando da sua publicação original e mantém - década e meia depois - as qualidades e o interesse que então lhe foram reconhecidas e continua como caso raro na longa bibliografia da Casa das Ideias.

Nota 1

Eu sei que aos olhos de muitos seria absurdo - e sopeso bem as palavras ao escrever isto - mas a verdade é que, neste caso concreto, a publicação em livro teria ganho se as três pranchas finais tivessem, sido suprimidas. Pouco adiantam ao relato - que até funcionaria melhor se o leitor continuasse na dúvida quanto ao destino de… - e deixam uma ponta solta de todo desnecessária, numa obra que deveria ser fechada em si mesma.

(Este texto foi elaborado a partir da leitura desta mesma história, sob o título Homem-Aranha & Gata Negra: O Mal que os Homens Fazem, na edição publicada em Portugal pela Devir, em 2006.)

Colecção Definitiva do Homem-Aranha, volume 4

Homem-Aranha: O mal no coração dos homens

Reúne a mini-série Spider-Man and the Black Cat #1-6

Kevin Smith (argumentos)

Terry Dodson (desenhos)

Salvat Brasil

Distribuição em Portugal em Maio de 2019

170 x 260 mm, 168 p., pb, capa dura

R$ 39,90 / 11,99 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)