22/11/2019

Blake e Mortimer: O Vale dos Imortais II

 
Traição
Há uma ano, sensivelmente, escrevia aqui que “A melhor expressão para classificar este álbum [O Vale dos Imortais, tomo 1] é (...): puro Jacobs. Para o bem e para o mal”.
O que faz com que, após a leitura deste tomo, que encerra o díptico, me sinta traído. Profundamente.
Relembro o contexto: numa narrativa que parte das últimas pranchas do tríptico O Segredo do Espadão, a aventura original dos heróis criados por Edgar Pierre Jacobs, datado de 1946, Yves Sente, Teun Berserik e Peter Van Dongen colocavam Blake e Mortimer face a uma nova ameaça surgida no coração da China, que tinha como base a descoberta de pergaminhos milenares capazes de alterar a História do território e influenciar decisivamente o seu curso na actualidade (de então).
Como curiosidade - escrevo eu hoje - o facto de boa parte da acção decorrer no território de Hong Kong, na época ainda colónia britânica e hoje de forma recorrente nomeado nos noticiários, devido à conjuntura associada à sua passagem plena para o domínio chinês.
O milésimo braço do Mekong, naturalmente, mantém a mesma linha do tomo inicial: uma mimetização bem conseguida do estilo Jacobs, na utilização excessiva e repetitiva de textos de apoio, no desenvolvimento de uma narrativa muito consistente e pormenorizada, que vai acompanhando tanto a acção dos protagonistas no presente, quanto o desvendar de um segredo da História antiga da China, uma planificação densa, com quatro e às vezes (quase) cinco tiras por página, um desenho que (muitas vezes) parece saído do estirador do mestre - embora aqui e ali haja alguns deslizes gráficos na perda de volume ou na deformação involuntária das personagens.
Nada disto, no entanto - pensa o (meu) leitor - justifica a forte palavra ‘traição’ que sub-titula este texto, o que é verdade. Traição, acrescento agora, ao espírito que sempre geriu as narrativas de Jacobs - e, diga-se em abono da verdade e como justificação adicional para o epíteto que eu escolhi, também esteve na base das sucessivas retomas que essa mesma obra tem tido.
Um espírito que, pese a forte componente de antecipação científica que Jacobs imprimiu às suas aventuras de Blake e Mortimer, sempre as manteve dentro de um forte realismo - sendo a única excepção, provavelmente, a componente mística - compreensível - de O Mistério da Grande Pirâmide.
O grande problema de O milésimo braço do Mekong, digo eu, é a deturpação desse espírito, a sua negação mesmo, com a solução escolhida por Sente para a resolução do imbróglio em que mergulhou desta vez Blake, Mortimer e (principalmente) Nasir.
[E embora não vá adiantar nada que os autores não tenham já revelado, aconselho que pensem duas vezes antes de continuarem a leitura deste texto, porque poderão intuir o que já é evidente e perceber onde eu quero chegar…]
Uma solução que a capa - bastante fraca e infeliz, diga-se de passagem (não sendo a exclusiva da FNAC, com Olrik, muito superior) - revela e que passa pela convivência de Mortimer com seres e conceitos que dificilmente combinam com a sua herança de décadas. Um pouco à imagem - com todas as diferenças evidentes e os que continuaram a leitura não tirem daqui qualquer conclusão - com o que fez Uderzo quando inseriu extraterrestres em Astérix: Céu cai-lhe em cima da cabeça...
Principalmente por isto, o reencontro feliz com o ‘mais puro Jacobs’ que nos foi dado até agora após a morte do criador do fleumático Blake e do impulsivo Mortimer, redunda numa profunda desilusão, a que será curial acrescentar o facto de o confronto latente ao longo dos dois álbuns entre os dois britânicos e o vilão Olrik nunca beneficiar de uma confrontação directa, o que esvazia em muito a importância do papel deste último, uma vez que o relato termina sem que os protagonistas saibam quem defrontaram…
E, a talho de foice, o mesmo poderá ser dito em relação à inclusão de duas mulheres em papéis de alguma relevância, uma vez que eles poderiam igualmente ter sido desempenhados por homens sem que isso de nenhuma forma afectasse o desenrolar dos acontecimentos - o que, deixem-me acrescentar - tornaria mais ‘puro’ o ‘puro Jacobs’ que os autores nos trouxeram.

O Vale dos Imortais II - O milésimo braço do Mekong
As aventuras de Blake e Mortimer segundo as personagens de Edgar P. Jacobs
Yves Sente (argumento)
Teun Berserik e Peter Van Dongen (desenho)
Edições ASA
Portugal, 22 de Novembro de 2019
235 x 310 mm, 56 p., cor, capa dura
15,90 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar belas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Senti o mesmo aquando do último Indiana Jones (Caveira de Cristal), aquele final com os aliens foi WTF ao máximo e não tinha cabimento no histórico do personagem, a faceta sobrenatural sim, podiam ter levado a trama para o lado da conspiração humana com uns pózinhos de sobrenatural vindo da antiguidades mas não aliens que ressuscitam quando lhes voltam a colocar a cabeça.

    Isto também de certa maneira estragou o Abismo do James Cameron, aquela 3ª parte final foi mesmo saída do Encontros Imediatos do 3º grau, o problema é que este filme e outros já tinham sido feitos e com melhor resultado.

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  2. Uma das séries que queria comprar mas não consigo encontrar os volumes inicias

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