28/04/2020

O Penteador

Desanálise




O Penteador é uma proposta se não estranha, pelo menos invulgar. Invulgar na sua boa disposição, no seu desprendimento em relação aos valores vigentes, no carácter onírico e até utópico que perpassa ao longo das suas pranchas.
Desconcertado pela leitura - que se revelou muito agradável - e pelo (re)encontro com alguém que as vidas afastaram, deixo aqui a minha desanálise desta desnovela gráfica como o próprio Paulo J. Mendes a definiu.
Começo pelo princípio: conheci o Paulo J(orge, que só agora descobri ser) Mendes(!) quando entrei para o projecto Comicarte, já lá vão quase quatro décadas. Durante alguns anos, partilhámos projectos, trabalhámos afincadamente em muitos deles, vimos alguns ficar pelo caminho, fomos responsáveis - com uma equipa que foi assumindo diferentes dimensões e estruturas - por alguns sucessos e pela criação do Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto, que se revelou um impulso incontornável e fundamental para a banda desenhada em Portugal.
Depois, as vidas pessoais e profissionais afastaram-nos. Paralelamente, eu continuei pela BD, o Paulo Jorge dedicou-se aos comboios, à medalhística, aos azulejos, (recentemente…) aos diários gráficos…
Na época em que nos conhecemos, o Paulo Jorge era (também) autor de BD e são desse tempo as bandas desenhadas que lhe conheci - publicadas nos fanzines Comicarte e Düdü - que agora fui reler para confirmar a memória que delas retive. Se a arte de Presunto para Hitler, O Anjo, Boa viagem ou - principalmente! - A Psicopasta tinha algumas limitações - que eram sinónimo de um processo de aprendizagem - a par do humor absurdo e do non-sense que (também) o caracterizavam, distinguiam-se pela coerência, por uma escrita cuidada e por um bom domínio da planificação.
Dessa forma, foi balizado nestes paradigmas, que abordei O Penteador.
Se o resumo de uma forma geral não ajudou, em termos de conteúdo, quanto ao que seria expectável da obra - embora o nome do protagonista, Mafaldo Limparrim (já) surpreendesse - a leitura tornou-se uma experiência desconcertante, porque nada parecia encaixar em lugar nenhum ou - mais exactamente - apesar da aparente incongruência e dos disparates desabridamente à solta, tudo se ajustava na perfeição.
Confusos? Foi essa a minha sensação ao longo das primeiras páginas em que descobri um jovem, o tal Limparrim, contratado para ser penteador - daí o título! - de manequins, numa loja de rua de uma pequena cidade, nas proximidades de uma vila suburbana de ‘maus ‘ares’ - mas boa gente.
A estranheza foi-se entranhando - já dizia o outro… - as situações foram-se sucedendo a bom ritmo e com uma assinalável recorrência até que, às tantas, dei por mim rendido ao absurdo e ao surreal, torcendo por Limparrim e Venceslinda e o pão com fiambre (se lerem vão perceber...), ao ritmo de bebedeiras e almoçaradas de um grupo de amigos, da hierarquia (pouco) católica, dos políticos locais e da realeza. A isto - que já não era pouco - há que acrescentar uma cliente insuportável, um anjo em busca da felicidade alheia e uma capela que ninguém conhece mas esconde um grande segredo e a embirração (natural) do Paulo Jorge com a religião e a política.
Divertido, agradável, com uma escrita assertiva, bem ritmado e com um traço que mesmo não sendo sedutor se mostra eficaz e legível, O Penteador revela-se como que um bálsamo de boa disposição nestes tempos de confinamento e como uma predição do que todos vamos querer fazer quando finalmente pudermos sair de casa: conviver, almoçar com amigos, conhecer gente, correr à doida pelas ruas… mesmo que nus!

O Penteador
Paulo J. Mendes
Escorpião Azul
Portugal, Fevereiro de 2020
170 x 240 mm, 160 p., pb/cinza, capa mole com badanas
15,00 €

(imagens disponibilizadas pela Escorpião Azul; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Permito-me discordar de "com um traço que mesmo não sendo sedutor", mas gostos são gostos...

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    1. Discordar é saudável. Acho o traço do Paulo Jorge muito eficaz, não o acho sedutor, visualmente muito atraente. O que não significa que em termos de narração, não seja melhor do que o de grandes desenhadores do ponto de vista estético e plástico.
      Boas leituras... caseiras!

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