O Penteador é uma proposta se não estranha, pelo menos invulgar. Invulgar na sua boa disposição, no seu desprendimento em relação aos valores vigentes, no carácter onírico e até utópico que perpassa ao longo das suas pranchas.
Desconcertado
pela leitura - que se revelou muito agradável - e pelo (re)encontro
com alguém que as vidas afastaram, deixo aqui a minha desanálise
desta desnovela gráfica
como o próprio Paulo J. Mendes a definiu.
Começo
pelo princípio: conheci o Paulo J(orge, que só agora descobri ser)
Mendes(!)
quando entrei para o projecto Comicarte,
já lá vão quase quatro décadas. Durante alguns anos, partilhámos
projectos, trabalhámos afincadamente em muitos deles, vimos alguns
ficar pelo caminho, fomos responsáveis - com uma equipa que foi
assumindo diferentes dimensões e estruturas - por alguns sucessos e
pela criação do Salão Internacional
de Banda Desenhada do Porto, que se
revelou um impulso incontornável e fundamental para a banda
desenhada em Portugal.
Depois,
as vidas pessoais e profissionais afastaram-nos. Paralelamente, eu
continuei pela BD, o Paulo Jorge dedicou-se aos comboios, à
medalhística, aos azulejos, (recentemente…)
aos diários gráficos…
Na
época em que nos conhecemos, o Paulo Jorge era (também) autor de BD
e são desse tempo as bandas
desenhadas que lhe conheci - publicadas nos fanzines Comicarte e
Düdü - que
agora fui reler para confirmar a memória que delas retive. Se a arte
de Presunto para Hitler, O Anjo, Boa viagem ou -
principalmente! - A Psicopasta tinha algumas limitações -
que eram sinónimo de um processo de aprendizagem - a par do humor
absurdo e do non-sense que (também) o caracterizavam, distinguiam-se
pela coerência, por uma escrita cuidada e por um bom domínio da
planificação.
Dessa
forma, foi balizado nestes paradigmas, que abordei O Penteador.
Se
o resumo de uma forma geral não ajudou, em termos de conteúdo,
quanto ao que seria expectável da obra - embora o nome do
protagonista, Mafaldo Limparrim (já) surpreendesse - a leitura
tornou-se uma experiência desconcertante, porque nada parecia
encaixar em lugar nenhum ou - mais exactamente - apesar da aparente
incongruência e dos disparates desabridamente à solta, tudo se
ajustava na perfeição.
Confusos?
Foi essa a minha sensação ao longo das primeiras páginas em que
descobri um jovem, o tal Limparrim, contratado para ser penteador -
daí o título! - de manequins, numa loja de rua de uma pequena
cidade, nas proximidades de uma vila suburbana de ‘maus ‘ares’
- mas boa gente.
A
estranheza foi-se entranhando - já dizia o outro… - as situações
foram-se sucedendo a bom ritmo e com uma assinalável recorrência
até que, às tantas, dei por mim rendido ao absurdo e ao surreal,
torcendo por Limparrim e Venceslinda e o pão com fiambre (se
lerem vão perceber...),
ao ritmo de bebedeiras e almoçaradas de um grupo de amigos, da
hierarquia (pouco) católica, dos
políticos locais e da
realeza. A isto - que já não era pouco - há que acrescentar uma
cliente insuportável, um anjo em busca da felicidade alheia e uma
capela que ninguém conhece mas
esconde um grande segredo e a embirração
(natural) do Paulo Jorge com a
religião e a política.
Divertido, agradável, com uma escrita assertiva, bem ritmado e com
um traço que mesmo não sendo sedutor se mostra eficaz e legível, O
Penteador
revela-se como que um bálsamo de boa disposição nestes tempos de
confinamento e como uma predição do que todos vamos querer fazer
quando finalmente
pudermos
sair de casa: conviver, almoçar com amigos, conhecer gente, correr à
doida pelas ruas… mesmo
que
nus!
O
Penteador
Paulo
J. Mendes
Escorpião
Azul
Portugal,
Fevereiro de 2020
170
x 240 mm, 160 p., pb/cinza, capa mole com badanas
15,00
€
(imagens
disponibilizadas pela Escorpião Azul; clicar nelas para as
aproveitar em toda a sua extensão)
Permito-me discordar de "com um traço que mesmo não sendo sedutor", mas gostos são gostos...
ResponderEliminarDiscordar é saudável. Acho o traço do Paulo Jorge muito eficaz, não o acho sedutor, visualmente muito atraente. O que não significa que em termos de narração, não seja melhor do que o de grandes desenhadores do ponto de vista estético e plástico.
EliminarBoas leituras... caseiras!