06/05/2020

A Assembleia das Mulheres

Por comida e sexo



Quando ouço ou leio na mesma frase as expressões “adaptação” e “texto original”, sinto de imediato um incómodo arrepio e forma-se rapidamente um sentimento de rejeição em mim.
Não só por isso - mas também… - a leitura de A Assembleia das Mulheres foi sendo adiada no tempo. Erradamente, sei-o agora, porque a adaptação, por Zé Nuno Fraga, da peça homónima de Aristófanes, escrita há cerca de 2500 anos, originou uma banda desenhada que merece plenamente esta designação e justifica uma leitura atenta.
Se esta é mais uma daquelas surpresas em que a BD nacional recorrentemente é pródiga, com projectos aparentemente saídos do nada, de inegável qualidade e interesse, tudo nesta adaptação - e vinco propositadamente o termo - parecia à partida condená-la ao fracasso.
Pela sua antiguidade - Aristófanes viveu entre 474 a.C. e 385 a.C. - e pela opção da utilização do texto integral original, pensado para outro tipo de suporte narrativo.
[Porque, sinto que devo esclarecer, a banda desenhada, a literatura, a dramaturgia, a televisão, o cinema, têm regras de escrita próprias que, geralmente, mesmo permitindo ao seu autor brilhar, pura e simplesmente não funcionam noutro suporte narrativo. Por isso, ainda, adaptar bem passa – geralmente… - por transpor a ideia e o espírito originais para os códigos narrativos do novo suporte.]
Pese, no entanto, todo o bom senso que serve de base ao que atrás escrevi, a verdade é que, de forma admirável, Fraga foi capaz de planificar as suas pranchas e de colocar nelas os actores de Aristófanes de tal forma, que os diálogos do dramaturgo grego parecem ter sido escritos directamente, palavra por palavra, para os seus balões de fala.
Graficamente, o traço semi-caricatural do autor português, servido por um bom trabalho de cor, revela-se ideal para complementar o tom irónico e mordaz de A Assembleia das Mulheres, cujo enredo, de incómoda actualidade, parte de uma tomada, pacífica, do parlamento ateniense pelas mulheres que, assim, passam a governar e introduzem gradualmente uma ditadura feminina na cidade-estado, com o beneplácito submisso e incoerente de quase todos os homens, iludidos pelas promessas de comida e sexo.
Há 2500 anos, tal como hoje, alguém duvida que são elas que fazem mover o mundo?

A Assembleia das Mulheres
Zé Nuno Fraga
A Seita, Outubro de 2019
210 x 275 mm, 56 p., cor, capa dura
ISBN: 978-98-95457-43-4
14,00 €

(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 1 de Maio de 2020; imagens disponibilizadas pela editora A Seita; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. Acredito que seja A Assembleia das Mulheres seja um bom livro de ler.

    Cumprimentos

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