Acabei
a leitura há algum tempo, mas ainda me sinto nas nuvens (e, sim, hão
de perceber o que estou a dizer…)
Nas
nuvens pela belíssima leitura que me foi proposta; nas nuvens
algures, perdido, entre a simplicidade da(s) história(s) e a
qualidade da narrativa.
Parece
contraditório? Continuem a ler, vou tentar explicar.
E
vou tentar explicar, contando o mínimo possível do enredo, pois
qualquer revelação pode ser a mais, pode destruir o prazer de uma
leitura imensamente rica, tocante, ternurenta, um pouco
lamechas até - e que mal tem isso? - acima de tudo musical.
Porque,
antes de mais - acho que o Filipe Melo não me vai contradizer - esta
é uma história de amor à música. Mais, talvez, esta é uma, duas,
três, (talvez mesmo) quatro, cinco, seis histórias de amor pela
música; uma enorme, imensa história de amor pela música. Ou várias
histórias de amor pela música, pelas músicas, pelas várias formas
de explorar, viver, sentir, partilhar, ensinar, a música.
Mas,
se tudo em Balada
para Sophie
nasce
da rivalidade (na verdade vivida só a um...) entre dois
pianistas
ainda crianças,
depois seguem-se as mudanças do crescimento, o atravessar de uma
grande guerra de consequências imprevisíveis e desastrosas, o
assistir à emergência de novos géneros musicais... e a
decadência, a impotência, o sentimento de frustração e de vida(s)
perdida(s)...
Tudo
isto contribui para dar solidez e consistência ao relato destas
histórias intensas, ricas nas suas contradições, fortes nos
desejos e na vontade de vencer de cada protagonista - mesmo que não
sempre, mesmo que nem sempre atingindo o auge - histórias
encadeadas, entrecruzadas, que a determinada altura se tocaram,
que às vezes seguiram juntas, por mais ou menos tempo, que
divergiram depois, com o mal e/ou o bem já feitos - mesmo que, um e
outro, ignorados - irreversivelmente, sem volta atrás.
Balada
para Sophie é (também) uma
história de amor. Uma não (outra
vez). Duas, sem dúvida, três indiscutivelmente. Mesmo quatro ou
cinco, porque ‘amor’ pode ser mais do que desejo, sexo, paixão,
obsessão(?). Pode ser filial,
paternal, até uma espécie de amizade forte. E todos eles, todas as
suas histórias,
estão neste livro.
Livro
onde há, também, na(s) sua(s várias) história(s), lugar para
ódios, obsessões, vinganças, manipulações, retaliações,
desforras, invejas, ciúmes, abusos, exploração, cedências (ao
fácil, ao imediato, à notoriedade, à fama, ao dinheiro…), envelhecimento... Porque,
a sua história - as suas histórias, então… - são, antes do
mais, histórias de seres humanos iguais a nós nos seus defeitos,
diferentes de nós, porque todos e
cada um somos uno…
Releio
o que escrevi até aqui e percebo que dizendo tanto - para quem já sabe… -
ainda não disse nada sobre o livro ao potencial leitor. Porque não
quero dizer, porque quero que o leiam primeiro -
e não deixem de o fazer! - e
venham depois partilhar, decifrar este conjunto de frases
aparentemente desconexas.
Porque,
não gostando muito de declarações absolutas, de escrever isto não
abdico: este é, até agora, o melhor livro de Filipe Melo. E um dos
grandes livros deste ano. E, sem dúvida, bem mais do que isso, um
daqueles raros livros que marcam e não se esquecem
e a que se volta(rá) recorrentemente.
Depois
de brilhar com o humor desbragado e a louca acção de Pizzaboy e Dog Mendonça, depois de mergulhar nas trevas (também) fantásticas da
guerra colonial em Os Vampiros,
depois dos curtos (literalmente) exercícios narrativos de
Comer/Beber,
é em Balada de Sophie
que o pianista/cineasta/humorista/argumentista dá mais de si, se
expõe mais, partilha mais connosco. Das suas paixões, dos seus
sonhos, daquilo que é, enquanto
pessoa.
Porque,
na sua aparente simplicidade, na ligeireza (enganosa) da sua escrita,
na forma como o enredo se desenrola de forma rápida, (nada) linear,
arrastando-nos irremediavelmente, mas de forma suave e delicada,
Balada para Sophie é
um tratado de narração. Porque nada está ali a mais, as parcas
palavras, os muitos silêncios, a rica ‘banda sonora’ (que nos é
deixada ouvir (?) mentalmente), as cenas que só fazem sentido mais à
frente, tudo tem o seu tempo, o seu lugar, a sua lógica, a sua razão
de ser e de existir.
Se
tudo o que atrás está escrito
é verdade, seria uma profunda injustiça para com o Juan Cavia
deixar este texto ficar por aqui. Porque, incontornavelmente, esta é
uma obra narrada, a dois, com uma cumplicidade que conhecemos ou
adivinhamos entre o narrador oral e o visual, percebendo que entre
eles - Melo e Cavia, claro - há uma absoluta sintonia que faz com
que texto e desenho (mais consistente, menos caricatural de acordo
com o tom da obra), sentimentos e cores (adequadas e belíssimas),
impressões e expressões (de qualidade superlativa), cooperem para o
(nosso bem)
objectivo comum: levar-nos ao longo de quase trezentas páginas, ao
longo de algumas décadas - com tantos anos perdidos… - por uma
bela, singela, terna e também lamechas, história. HISTÓRIA. De
amor. Musical.
E
pronto, agora que já a li, que escrevi sobre ela, gostava de ouvir a
Balada para Sophie…
Balada
para Sophie
Filipe
Melo (argumento)
Juan
Cavia (desenho e
cor)
Tinta
da China
Portugal,
Setembro de 2020
175
x 260
mm, 320
p., cor, capa dura
36,00
€
(outras imagens disponibilizadas pela Tinta da China para ver aqui; clicar
nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)
Balada para Sophie
ResponderEliminarEfetivamente estamos perante uma viagem que nos toca cá dentro.
O tempo recua através da memória
Esta balada tem muita inspiração “cinematográfica “estou a lembrar-me assim de repente do imortal filme de Milos Forman “Amadeus” em que Salieri (F. Murray Abraham) confessa a um padre que foi o responsável pela morte de Mozart (Tom Hulce) e relata como conheceu, conviveu e passou a odiar Mozart, que era um jovem irreverente, mas compunha como se sua música tivesse sido abençoada por Deus.”.
Julien Dubois, músico, confessa a uma jovem jornalista (Adeline Jourdain) que o visita, que François Samson foi o melhor pianista de todos os tempos (“Um miúdo de dez anos tocou de memória, os 27 estudos (de Chopin) sem uma ÚNICA FALHA“).
A história é muito sobre um misto de admiração e raiva que Julien tem por François, que o consome ao longo da sua vida.
A inteligente dupla de autores, Filipe Melo versus, Juan Cavia, sabe muito bem dosear o ritmo da história, colocando o leitor por dentro do enredo, quase desde o inicio.
Pequenos fragmentos:
“Está na hora de pôr algumas coisas em pratos limpos”
“Moral da História – Não acredite em tudo o que lê o verdadeiro vencedor foi ele”
Nada é deixado ao acaso, nesta obra única………tudo foi planificado de forma a assegurar uma coerência quase perfeita no desenrolar da história……e que história.
A reter muitos dos maravilhosos “diálogos” esculpidos por magnificas imagens, numa verdadeira arte visual.
É digno de estudo, cada “plano”, como se as linguagens entre a sétima e nona artes se fundissem numa só.
A importância da música é fulcral, com o instrumento de eleição, o PIANO.
“Imaginar como seria tocar como ele, ser como ele”
“É incrível a força que se ganha quando alguém acredita em nós mais do que nós próprios”
“As normas da sociedade desaparecem com a falta de dinheiro”
“….. Restou-me caminhar até doerem os pés”
“Podem ocupar o nosso país, mas não vão ocupar a nossa alma”
“Comecei a gostar mais dos aplausos do que da musica”
“Quando se é uma fraude a fama pode chegar, mas com ela vem este vazio”
“Mas como alguém pode ser feliz a tentar ser outra pessoa”
A passagem da personagem “George Riviére” mais conhecido por Piolho na vida do protagonista é soberba. Não poderia existir um melhor desfile de desenhos com traço memorável, que é um dos grandes atrativos, história quiçá inspirada no neorrealismo italiano…………
Bem como num dos pontos altos deste álbum, anos mais tarde, o fugaz reencontro fortuito através do vidro do automóvel
“Acabamos por ser só personagens secundárias da nossa própria vida”
“Quando duas pessoas destruídas estão à beira do abismo…a tentação de saltar torna-se ainda mais irresistível” ……..
“Anne-Marie: Conheci o François enquanto ensaiava no Theatre Ambroise, ouvi a música vinda do andar de cima. Acho que já estava apaixonada mesmo antes de subir aquelas escadas”…………este texto ilustrado por uma vinheta perfeita.
“Todos temos as nossas cicatrizes. O François nunca me falou nas dele”…….mais uma vinheta perfeita.
Mais um dos magníficos diálogos aqui entre Dubois e a jornalista: “Guardar segredos faz-nos ficar velhos e sozinhos, menina Adeline …………e este guardei-o todos estes anos…..”
“…sempre fui o meu pior inimigo”
O diálogo entre “médico/doente “num desenho de tons encantador e poeticamente cinematográfico “A minha mãe faz isto porque nunca conseguiu uma carreira, e que culpa é que eu tenho? Eu não queria nada disto. Eu quero que isto acabe……mm-hmm”
A expressão no rosto do protagonista quando fala do falecimento de François Samson
“Pregou-me a partida de se ir embora antes de mim.”
“Ao roubar-lhe a Anne –Marie, eu sabia perfeitamente o que lhe estava a fazer.
“Eu matei o François Samson”…..aqui no auge do referido paralelismo com o filme Amadeus
“Uma pessoa tem de aceitar aquilo que é.”
“Quando se vem duma família pobre, menina Adeline, parece que a única coisa que faz sentido na vida é o trabalho”
E agora só me resta aconselhar vivamente a compra desta excelente obra de BANDA DESENHADA, e conter-me e não contar mais nada.
Acabei de ler a obra. Como sabes, leio muitas, muitas BDs, e digo sem medo: foi uma das melhores leituras deste caótico 2020.
ResponderEliminarTerminei emocionado. Lindo trabalho do Filipe e do Juan. Uma BD que merece (e vai, creio) ganhar o mundo.
Abraço deste lado do Atlântico.
Sidney Gusman
Acabei de ler a obra. Como sabes, leio muitas, muitas BDs, e digo sem medo: foi uma das melhores leituras deste caótico 2020.
ResponderEliminarTerminei emocionado. Lindo trabalho do Filipe e do Juan. Uma BD que merece (e vai, creio) ganhar o mundo.
Abraço deste lado do Atlântico.
Sidney Gusman
Uma belíssima obra, sem dúvida, em qualquer sítio do mundo. E como tem edição garantida em França, Polónia e Estados Unidos vai poder conquistar muitos leitores.
EliminarBoas leituras Sidney!