23/12/2020

Shangai Dream

Por várias razões



Há obras que justificam destaque por várias razões e mesmo que nenhuma delas seja superlativa, o seu conjunto pode significar mais do que a simples 'soma'.

Shangai Dream é uma delas, para lá da obra em si, pela estreia em português das obras 'franco-belgas' de Jorge Miguel e pelo que significa no actual (bom) momento da edição de BD em Portugal.

Passo a justificar, sem qualquer hierarquização, mas começando naturalmente pela obra.

Ambientada durante a II Guerra Mundial, a narrativa arranca na Alemanha e termina na China, após a libertação pelos americanos. Entre estes dois extremos, temos tempo de assistir à perseguição aos judeus, primeiro por parte dos nazis, depois pelos japoneses, apara agradar àqueles seus aliados, com todas as trágicas implicações que essa tentativa de aniquilação de uma raça teve.

O protagonista é Bernhard Hersch, judeu, ex-cineasta, por força da proibição alemã. Bernhard tem um sonho: transformar em filme um argumento da sua esposa Illo, uma comédia romântica passada nos Estados Unidos.

O acaso, ditará coisas diferentes e, após o abandono forçado da pátria devido ao ódio, o destino será Xangai. Da resistência (impotente) ao avanço dos nazis aos dramas familiares que terão lugar, da capacidade de renovação e descoberta de novos caminhos ao encontrar de forças insuspeitadas para concretizar os sonhos, este é um drama que tanto pode ser encarado como uma história de guerra, como um hino ao cinema.

Pelo meio, narrativamente, há alguns percalços, algumas sequências menos conseguidas e uma ligeira cedência a finais felizes, mas o conjunto perdoa esses lapsos e, no tempo em que vivemos, sabe bem acreditar que os sonhos se concretizam e a felicidade existe. Mesmo que só os possíveis e que pelo caminho muitos dramas tenham sido vividos para se chegar a ela.

E escrito isto, penso que fica claro - para mim, pelo menos - que Shangai Dream ficaria por editar em português se, ao lado do argumentista francês Philippe Thirault, não estivesse o desenhador luso Jorge Miguel. Mas, sendo assim, esta edição faz todo o sentido, até comercialmente pois este será um bom chamariz para lá do círculo de habituais compradores de BD, que a edição tenha acontecido por este motivo, numa altura em que o mercado apresenta a consistência que lhe reconhecemos.

Jorge Miguel, apesar de alguma rigidez e menor dinamismo ao nível dos rostos - que atenua após as primeiras pranchas - assegura um consistente retrato de época e revela-se um desenhador realista interessante, como já se adivinhava nos dois álbuns editados em Portugal, embora mais em Camões, De vós não conhecido nem sonhado?, do que em O Fado ilustrado (ambos da Plátano Editora).

Não quero terminar este texto sem mais três referências, que reflectem o actual momento editorial.

A primeira, a aposta na edição integral - mais uma! - em detrimento dos dois álbuns isolados, sempre mais arriscada pelo maior investimento inicial exigido.

A segunda, a co-edição entre a Arte de Autor e A Seita, como forma de amortizar o investimento - e de fazer coincidir projectos comuns - reveladora de bom senso e de uma forma de estar que nem sempre existiu.

Finalmente, sendo cada vez mais habitual, é sempre justo ressalvar a qualidade do objecto livro, sólido e apelativo, bem impresso, em bom papel e com inclusão da capa (do segundo volume original) não escolhida para a presente edição, bem como de um caderno gráfico final comentado por Jorge Miguel.


Shangai Dream
Philippe Thirault (argumento)
Jorge Miguel (desenho)
Arte de Autor + A Seita
Portugal, Dezembro de 2020
200 x 280 mm, 120 p., cor, capa dura
24,00


(imagens disponibilizadas pelas editoras; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

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