10/03/2021

Sybylline 1975-1982

Terno e violento


Tenho Raymond Macherot como um dos meus autores favoritos, que me consegue surpreender sempre, em especial pela forma como consegue combinar o grafismo simpático e ternurento de Chlorophylle ou Sibylline, pequenos habitantes de belos bosques naturais, com uma violência explícita que choca pelo contraste.
Possivelmente, para ser levado a sério e perdurar na memória de quem o leu, não poderia ser de outra forma.

[Na verdade, poderia, claro, bastava que fosse outra a opção temática e o humor com a aventura os caminho únicos, mas felizmente não aconteceu assim.]

...não poderia ser de outra forma - para retomar a ideia que o aparte interrompeu - porque sendo o universo dos pequenos roedores, que hoje vos proponho como leitura, um retrato vivo da sociedade humana, seria de todo errado expurgá-lo daquilo que ele tem de pior - ou de mais natural...

Vez após vez, neste regresso de Macherot a Sibylline, agora com a contribuição em alguns argumentos de Paul Deliège, os habitantes do pequeno bosque vêem o seu quotidiano (que desejam) pacífico, perturbado por quem vem de fora, com más intenções.

A história que abra este volume vai soar familiar e evocar boas memórias a quem (re)conhece o universo de Chlorophylle e os seus confrontos com Anthracite e os seus acólitos, com aquela ratazana agora substituída pela pérfida Lucrécia, e também pelo regresso, embora pontual, de Sibylline a(os seus) ambientes citadinos (de origem). Mas, neste relato, como no seguinte, entre assaltos e tentativas de controlo, onde tudo se poderia resumir a confrontos (mais ou menos ingénuos) entre o Bem e o Mal, os autores decidem dar um passo em frente e, de forma natural, incluem nos diálogos ou no decorrer dos relatos, apontamentos que hoje nos soam estranhamente actuais - e incómodos: machismo, brutalidade policial, racismo, desconfiança do estranho - do estrangeiro, do diferente... Ou um inimigo (literalmente) assado pelo reactor de um avião.

Aparentemente pequenos nadas aqui e ali, que parecem surgir deslocados pela doçura dos protagonistas e dos cenários, mas que na verdade não são mais do que o prolongamento neste universo animalista, da ferocidade que há no ser humano.

Mais à frente, já sozinho ao leme desta banda desenhada clássica mas incontornável, Macherot ressuscita o tom fantástico que já usara anteriormente, ao mesmo tempo que - em novo choque entre o tom do que narra e o que vemos, entre a utopia da temática e a crueza do real - quase esquece - ou esquece mesmo - Sibylline e Taboum para dar o protagonismo ao corvo Flouzemaker, mais dúbio e amoral.

Este realismo cru - em toada de aventura policial ou numa inesperada cumplicidade com o irreal - assume outros matizes, como o facto de os 'noivos' Sibilline e Taboum dormirem juntos, e explode quando a violência latente (em qualquer sociedade) encontra a sua válvula de escape e assistimos ao trespassar (literal) de um vilão, ao esmagar entre duas pedras (literal também) de um protagonista incómodo ou ao devorar (mais uma vez literal) de dois cúmplices pelo último elemento de um trio de facínoras...

Tudo isto, reforço mais uma vez, em contraste com o traço agradável, 'fofo ', expressivo e dinâmico de Macherot, embora nesta fase da sua carreira surja muitas vezes um pouco mais duro, um pouco mais sujo, um pouco mais negligente, em oposição à luminosidade e leveza que antes o caracterizava. Sinais, possivelmente, da depressão que o afectava nesta altura da sua vida - e da sua carreira - o que também tornou mais espaçadas as aventuras da pequena Sibylline.


Nota final de alguma estranheza para o dossier - curto - que abre este volume pois, ao contrário do habitual, não se centra nas histórias que o compõem, mas explora em grande parte as histórias que o antecederam, o que esvazia um pouco a sua pertinência, embora permita de igual modo conhecer o autor e o contexto das suas criações.


Sibylline 10975-1982
Integral 3
Raymond Macherot e Paul Deliège (argumento)
Raymond Macherot (desenho)
Casterman
França, Junho de 2012
217 x 288 mm, 216 p., cor, capa dura
ISBN : 9782203050228
25,00 €

(capa disponibilizada pela Casterman; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

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