Sentimentos
“Gente negra já fez alguma coisa importante?”
Jeremias in Alma
Acredito que há situações que só podemos compreender realmente quando - se - as sentimos na pele. Ser vítima de racismo (neste caso específico) é uma delas.
Porque, por muito que possamos compreender e/ou interpretar as situações, por muito que nos repugnem atitudes prepotentes e abusadoras contra os mais fracos. motivadas apenas - apenas…? - pela cor da pele, uma coisa é ver, outra é sentir. Na pele. E na alma.
Depois de em Pele nos ter sido apresentado Jeremias (criação de Maurício de Sousa, nos anos 1960), na versão de Rafael Calça e Jefferson Costa, ele regressa na colecção Graphic MSP, de novo às voltas com a sua cor e - a partir daí - questiona quem é, de onde vem, de quem descende, quem é/foi a sua família.
Na prática - para escrever de forma simplista - é de certa forma uma viagem iniciática ao seu próprio passado, através das linhas genealógicas que desaguaram nele.
Com um pormenor - um ‘pormaior’ na verdade, como dizia alguém… - determinante. Jeremias, os seus pais, os pais dos seus pais, os seus ascendentes é/são/foram negros. E, por isso, sofreram – sofrem ainda… - na pele a escravatura, a discriminação, os insultos, a perseguição, os preconceitos policiais, o ódio gratuito… A diferentes níveis, de formas díspares, mas sempre abrindo feridas, se não na pele, sem dúvida na alma.
Mais uma vez partindo de experiências pessoais ou de conhecidos, os autores privilegiam o tom narrativo em detrimento do panfletário e, numa história com diversos matizes, em que episódios aparentemente desconexos vão criando uma base de suporte bem estruturada e sustentada, mais do que ‘espetar-nos as situações pelos olhos dentro’, preferem que a leitura nos leve a intuí-las, a detectá-las, a compreendê-las - tanto quanto nos permite a nossa pele branca - para depois podermos agir de acordo com a nossa interpretação.
Porque, em pleno século 2021, a questão do racismo continua presente e miseravelmente actual e tudo o que possa ser dito, escrito, contado não será demais.
De um ponto de vista mais formal, se o traço de Jefferson Costa, esquemático e nervoso, numa primeira olhadela pode não nos encher a alma – pois…
No entanto, é esse mesmo desenho que mostra quase sempre muito mais do que aquilo que vemos à superfície - superficialmente… - e, a título de exemplo, deixo uma sugestão: quando lerem a história, observem as sombras…
Aliás, uma leitura mais compenetrada, mais atenta, irá revelar o seu invulgar dinamismo e legibilidade e como é dotado de uma expressividade incomum, ideal para um relato em que é fundamental ‘ver’ os estados de alma. De Jeremias e dos outros.
Jeremias:
Alma
Colecção Graphic MSP
Rafael
Calça (argumento)
Jefferson
Costa (desenho)
Panini
Brasil,
Dezembro
de 2020
190
x 275 mm, 96 p., cor, capa dura
R$
44,90
(imagens disponibilizadas pelo editor, aquando da apresentação do livro; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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