25/10/2021

Jean-Yves Ferri: “Eu e Conrad somos diferentes de Goscinny e Uderzo”




A propósito do recente lançamento de Astérix e o Grifo, a convite das edições ASA entrevistei Jean-Yves Ferri, o argumentista da obra, por videoconferência, no passado dia 13 de Outubro.
A conversa versou sobre Astérix e Tintin, passando pala Covid-19 e pelo trabalho gráfico de Didier Conrad, e já a seguir encontram as suas respostas a todas as perguntas.


As Leituras do Pedro - Há quatro anos, em “Astérix e a Transitálica”, o vilão era um certo Coronavírus de quem nunca se tinha ouvido falar… Devemos temer ataques de grifos nos próximos meses?

Jean-Yves Ferri - (risos) Tem razão, vou estar atento! (risos) Sempre me disseram que se inventasse algo irritante, perigoso, que depois se concretizasse, me iam acusar disso! (risos) Mas não fui eu que criei a Covid-19! (risos)



As Leituras do Pedro - Os leitores que cresceram a ler os álbuns de Goscinny e Uderzo, olham para os vossos e dizem “Não está mal, mas…” Qual o conselho que lhes daria?

Jean-Yves Ferri - Normalmente respondo que estou de acordo com eles: não são Goscinny, não são Uderzo. (risos) Mas também digo que eu próprio sou um grande leitor dos álbuns de Goscinny e Uderzo, que me interesso bastante pela época histórica em que se passam os álbuns de Astérix. Mas os tempos hoje são outros, é preciso aceitar a ideia da retoma da série, com outro tom, outras ideias, porque eu e Conrad somos duas pessoas diferentes de Goscinny e Uderzo.



As Leituras do Pedro - Graficamente, penso que Conrad neste álbum já assimilou as influências de Uderzo e o seu traço já é um traço pessoal, mais próximo da escola de Marcinelle. Concorda?

Jean-Yves Ferri - Sim, sem dúvida, em especial neste álbum. Penso que a história agradou bastante ao Conrad e que ele teve muito prazer a desenhá-la. Havia o desafio da ‘neve’, o conceito de ‘álbum branco’, ele tinha de encontrar formas de o desenhar para não se tornar monótono e continuar perfeitamente legível, apesar do branco. Para um desenhador é um desafio muito interessante.



As Leituras do Pedro - Este já é também o seu Astérix ou ainda há uma herança de Goscinny e Uderzo que precisa de abandonar?

Jean-Yves Ferri - Acho que este álbum já tem um pouco mais do meu tom natural, no meu registo, especialmente porque é um álbum que não caricatura um país real. Goscinny enviou as suas personagens para países existentes: Inglaterra, Itália, Alemanha, etc. Neste álbum, o que me deu mais prazer foi criar um país imaginário. É um pouco diferente, tem mais a ver com aquilo de que eu gosto, que eu sou.



As Leituras do Pedro - Porquê a escolha de um território russo para situar esta aventura?

Jean-Yves Ferri - O álbum não se passa na Rússia, não é uma caricatura dos russos. Decorre num território algures entre a Rússia, a Mongólia e o Cazaquistão e utilizei elementos do folclore dos três países no álbum.

Ser um território indefinido prestava-se a criar um país imaginário. Por outro lado, a localização era propícia para um álbum que teria a neve como um elemento fundamental.



As Leituras do Pedro - Foi fácil criar um país inexistente?

Jean-Yves Ferri - Não é mais fácil, mas gostei muito da ideia .



As Leituras do Pedro - Neste álbum, quando encontramos os gauleses eles já chegaram ao seu destino, ao contrário do que acontece nos anteriores, em que a viagem também é narrada. Alguma razão especial para esta opção?

Jean-Yves Ferri - Por um lado, contar a partida, a viagem, teria tornado o álbum muito extenso. Os leitores já conhecem muito bem a aldeia e os seus habitantes. Por outro, não teria permitido aproveitar devidamente a paisagem e os elementos locais.



As Leituras do Pedro - Neste álbum não há poção mágica. Houve alguma razão especial para isso? A vontade de tornar Astérix mais humano?

Jean-Yves Ferri - A poção mágica é algo que facilita demasiado a vida aos heróis. Mesmo no tempo de Goscinny, ele criava obstáculos que a poção não conseguia resolver, para Astérix e Obélix terem de dar o melhor de si mesmos.

Foi divertido arranjar uma forma de a afastar do relato, Panoramix chega a dizer que a baixas temperaturas os trevos de quatro folhas, um dos seus ingredientes, se tornam instáveis. Um pouco como os da bomba atómica! (risos)



As Leituras do Pedro - Ao contrário dos álbuns anteriores, há um menor protagonismo de Astérix e Obélix. São mais espectadores do que aqueles que fazem a história avançar.

Jean-Yves Ferri - Os tempos são diferentes, já não estamos nos anos 60, quando os heróis eram primordiais. As situações resolvem-se em conjunto, em equipa. Isso permitiu também dar maior protagonismo às mulheres guerreiras, centrar a história em diferentes aspectos: em Panoramix que tenta recriar a poção mágica com elementos locais, em Ideiafix que acompanha os lobos…




As Leituras do Pedro - E também não há grifos, para lá do título…

Jean-Yves Ferri - Isso é muito importante. Contraria tudo o que os romanos fantasiavam sobre o mundo, em especial sobre as regiões que consideravam bárbaras. Para os romanos, a captura do grifo tinha um objectivo militar: mostrar a superioridade romana, mostrar o animal no circo como prova dessa superioridade, talvez até utilizá-los na guerra. Mas afinal os grifos não existiam… É um pouco uma metáfora da mentalidade militar dos ocidentais…



As Leituras do Pedro - Como são escolhidas as personagens reais que são caricaturadas nos álbuns? Há pessoas a pedir para serem incluídas no próximo Astérix?

Jean-Yves Ferri - Não! Têm medo do que possamos fazer com elas! (risos) No caso do escritor francês Michel Houellebecq, escolhemo-lo por causa do seu físico, que se adequava à personagem que queríamos criar.



As Leituras do Pedro - O próximo álbum, será o 40.º das aventuras de Astérix. Isso vai merecer uma história especial ou diferente?

Jean-Yves Ferri - Ainda não pensei nisso. A tradição diz que é necessário ter um álbum pronto, antes de começar a pensar no seguinte. (risos) Claro que já tenho algumas ideias. A intenção de usar a neve num álbum já existia há alguns anos, mas foi necessário encontrar a forma certa de a explorar, o que só aconteceu agora.



As Leituras do Pedro - Será um álbum caseiro, como ‘diz a tradição’?

Jean-Yves Ferri - Essa foi uma tradição que decidimos manter, mas não estamos prisioneiros dela. Tudo depende dos elementos que surgirem, das ideias que tivermos… E de assinarmos novo contrato! O nosso contrato é renovado álbum a álbum!



As Leituras do Pedro - Tal como existem os Spirou de… acha que seria interessante fazer o mesmo com Astérix, propor a outros autores histórias com maior liberdade criativa, em termos gráficos e temáticos, pelo tempo de um álbum?

Jean-Yves Ferri - A série principal continua a funcionar bem, é fundamental que continue a ter o seu espaço e que seja a base de Astérix. Mas podia ser interessante convidar várias equipas criativas para fazerem histórias curtas de Astérix, a publicar numa edição especial…



As Leituras do Pedro - Na página promocional existia um pi
scar de olhos a Tintin, toda a gente ficou a pensar que os gauleses desta vez iriam ao Tibet…

Jean-Yves Ferri - Foi muito divertido criar uma pista falsa. Para mais, Tintin e Astérix eram séries concorrentes nos anos 1960, 1970, mas também quis mostrar que essa guerra já acabou. Para além disso, este era um ‘álbum branco’, tal como Tintin no Tibet.



As Leituras do Pedro - Gostava de um dia escrever um álbum do Tintin?

Jean-Yves Ferri - Sim e até vou ter um fim-de-semana livre, mas infelizmente parece que não é possível! (risos)



(versão integral da entrevista com Jean-Yves Ferri que serviu de base ao texto publicado no Jornal de Notícias de 21 de Outubro de 2021; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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