23/01/2022

Zépestana: “Uma das funções mais nobres e salutares do humor é assinalar que 'o rei vai nu'"





Realizada a propósito do artigo A pandemia vista com humor, publicado na versão em papel do Jornal de Notícias de 19 de Janeiro de 2022 e disponível online, esta entrevista a Zépestana, criador de Os Grisalhos no Facebook, justificava a publicação na íntegra, que agora se faz.
No mesmo âmbito, serão publicadas entrevistas com Leonardo Cruz, argumentista de "Quarentoons - Uma agenda de um ano que já passou", e com André Oliveira e Pedro Carvalho, criadores de "Quarentugas - Testemunhos de loucura pandémica".


As Leituras do Pedro - A pandemia é um bom tema para fazer humor? Porquê?

Zépestana - PORQUÊ O HUMOR?

O humor sempre foi uma importante parte da vida societária. Ao humor, janela aberta para o mundo e a condição humana, nada escapa. Tem um apetite omnívoro, não desaproveita nem enjeita nenhum tema e atira sobre tudo o que mexe: da política aos costumes, do ensino à saúde, das relações conjugais aos impostos, da religião ao desporto…

A pandemia, tendo tomado conta das nossa vidas ao longo dos últimos dois anos, condicionado o nosso quotidiano, alterado o padrão das interacções sociais e monopolizado as atenções, não poderia deixar de escapar ao olhar crítico do humor. Estanho seria que um acontecimento desta envergadura, desta duração - e com tão forte impacto nas mais diversas esferas da vida das pessoas - constituísse, para o humor, um não-assunto.

O humor lida habilmente com o absurdo, o insólito, o bizarro, o inusitado. Ora, alguns dos comportamentos humanos ditados ou impostos pelo combate à pandemia proporcionaram terreno fértil para a observação irónica, a dissecação mordaz ou o comentário galhofeiro dos humoristas. Como não achar risível, por exemplo, a indumentária heterogénea tantas vezes adoptada no teletrabalho (casaco e gravata da cintura para cima; e pijama e pantufas do umbigo para baixo)?... Como deixar de sorrir perante o generalizado, manhoso e intensivo recurso ao cão do vizinho, engenhoso salvo-conduto para uma caminhada ao ar livre, quando as regras do confinamento impediam o cidadão comum de passarinhar pelas redondezas da sua residência?... Como não gracejar com o destemperado açambarcamento de toneladas de papel higiénico?…



PARA QUÊ O HUMOR?

As alterações - tão profundas como abruptas - provocadas no quotidiano das pessoas pela emergência pandémica, e pela decorrente crise socioeconómica, tiveram impactos nefastos na sua saúde mental e no seu bem-estar. Entre o vasto caudal de consequências nocivas, avultam a frustração e a angústia causadas pelo isolamento e pelo confinamento forçado em espaços fechados, pela falta de mobilidade e pela privação de convívio com familiares e amigos. O sentimento de impotência e o medo de contágio por um vírus letal, a incerteza quanto ao futuro, a monotonia da clausura - todos estes foram, entre muitos outros, factores impulsores de emoções negativas e de estados depressivos.

Ora, é justamente em momentos e conjunturas desta sombria natureza que sobressai o valor reconfortante e o préstimo paliativo do humor. Ao temperar o quotidiano agreste com um ingrediente lúdico, o humor consola, ajuda a desanuviar, a “desentristecer” (para usar as palavras de Caetano Veloso), a exorcizar pavores irrazoáveis, combate o tédio e a fadiga, converte-se, enfim, num factor estabilizador e gerador de bem-estar.

Foi nesse sentido que escrevi no prefácio do meu livro: Reconhece-se ao sorriso um incontestável potencial terapêutico. Trata-se de uma ferramenta fundamental no nosso sistema imunitário de resposta às crises. Essencial à superação das adversidades, à manutenção da sanidade mental e à própria sobrevivência, constitui um eficaz antídoto contra o pânico. A catarse que provoca alivia tensões e receios, mantém a esperança e restaura o ânimo, condimentos tão necessários nos dias que correm. Como notou Bernard Shaw, “a vida não deixa de ser engraçada, mesmo quando as pessoas morrem, do mesmo modo que não deixa de ser séria, mesmo quando as pessoas riem.”



As Leituras do Pedro - Há limites que não se podem atravessar?

Zépestana - Há peias que limitem o humor?

Esta é uma polémica, tão antiga e pouco consensual como tantas outras, não menos controversas: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?…e as portas, fizeram-se para abrir ou para fechar?…

Não falta quem pense que vale tudo para arrancar ao solitário leitor, ou à numerosa audiência, uma retumbante gargalhada.

Não pertenço a essa confraria.

Embora nem sempre seja fácil traçar, com exactidão, as fronteiras da legalidade (e, mais ingrato ainda, as do bom gosto), o criador de textos ou imagens de natureza humorística está desde logo sujeito, como qualquer outro cidadão - qual é a dúvida? - aos limites gerais da liberdade de expressão e de opinião. Se assim não fosse, estaríamos perante um inaceitável privilégio garante de im(p)unidade, da laia do medieval “direito de pernada”.

Bem sei que uma das funções mais nobres e salutares do humor é assinalar que “o rei vai nu. Mas, à conta disso, entendo que não posso (e sobretudo que não devo nem quero) descrever longa e minuciosamente o prepúcio real, a glande, o escroto de sua alteza, a uretra, o frénulo e os monárquicos testículos, sem levar minimamente em conta as circunstâncias, o contexto ou a natureza e composição da audiência (idade, condição socioeconómica, nível de instrução…).

Quem se dedica ao humor talvez lucrasse, de cada vez que um súbito rompante criativo origina um texto, ou uma ilustração, em reflectir nas palavras de Luis Fernando Veríssimo, um dos expoentes do melhor humor brasileiro: “Se não tivesse reprimido nenhum impulso e feito tudo o que deu vontade de fazer, na hora em que deu vontade, você hoje estaria preso, ou gravemente desfigurado. Civilização é autocontrole.”

Foi por assim pensar, por entender que também o humor deve ser norteado por princípios éticos e responsabilidade social (e sem que alguém se sinta obrigado a seguir-me as passadas), que adverti o leitor do meu livro: A doença causada pelo coronavírus “deixou marcas devastadoras em todos os continentes, na saúde pública e na economia. Ceifou a vida de centenas de milhar de pessoas, arrastou outras tantas para o desemprego e a pobreza, e levou á falência um número incalculável de empresas. Não é esse o tema deste livrinho. Nem podia ser. Galhofar com o sofrimento e a tragédia seria, mais do que uma desfaçatez e uma afronta, uma verdadeira obscenidade. Nas páginas que se seguem, é outra - e essa sim, risível - a realidade comentada : a forma como o cidadão comum (…) reagiu às contrariedades e aos condicionamentos impostos pela necessária higienização da sociedade: o confinamento, o uso da máscara, o distanciamento social…



As Leituras do Pedro - Como reagiram os leitores aos teus trabalhos?

Zépestana - Como eu gostaria de poder dizer que os leitores acorreram em magotes às livrarias, disputando ferozmente, como no coliseu romano, cada um dos meus livros! Como gostaria de anunciar que já está acertada a tradução da obra para o inglês, o alemão, o mandarim e o aramaico! E que decorrem negociações, em Los Angeles, para a respectiva adaptação ao cinema!

Infelizmente, num assomo de sinceridade, tenho de admitir que tudo isso é falso.

A verdade, nua e crua, é que eu não conheço os meus leitores. Para mim, são como os gambozinos: consta que existem, mas não se deixam ver. Mudos e escondidos, como os soldados chineses de terracota, deles não me chega qualquer ‘fidebéque’, como agora se diz.

Em todo o caso, a ausência de grafitos injuriosos rabiscados nas paredes do meu prédio, e o facto de ninguém me ter desamigado nas redes sociais, fazem-me crer que não há razões de queixa. Até me atrevo a supor que possa ter feito desabrochar breves sorrisos num ou noutro rosto. Não mais do que isso, pois o humor que cultivo não convida a gargalhadas estrepitosas nem suscita risadas alarves, de dentadura exposta.



Gente confinada é outra coisa
Zépestana
Edições ExLibris
Portugal, Novembro de 2021
210 x 145 mm, 40 p., pb, capa cartão
9,00 €

(clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

Sem comentários:

Enviar um comentário