23/03/2022

Wild West #2: Wild Bill

Lendas...

'Há já muito tempo que não tenho ilusões sobre a natureza humana.'

Wild Bill in Wild West #2

Repito o que escrevi, aquando da análise do primeiro volume desta série: "O subtítulo deste livro é As origens de uma lenda do Oeste mas, como todos sabemos, quando alguém chega ao estatuto intangível de ‘lenda’, destrinçar entre a realidade (histórica) e os ‘pontos’ que lhe foram sendo acrescentados por todos os que narraram a sua história é difícil, se não mesmo impossível.
Pouco importa, se a narrativa for boa… e contribuir para fazer crescer a lenda."

E repito porque, sem me lembrar do que então escrevi, foi o conceito que me veio à cabeça quando fechei este segundo tomo.

E se o primeiro supostamente era centrado em Calamity Jane e agora o protagonista é Wild Bill, a verdade é que as histórias - ou as lendas...? - de ambos vão avançando a par, entrecruzando-se aqui e ali, dando-nos a conhecer o seu percurso e os encontros e desencontros na vida - e com a vida...

Ele, caçador de prémios, futuro xerife, tão recto quanto implacável; ela, uma pobre coitada que luta para fazer esquecer e se libertar das múltiplas condições que a condenam: pobre, abusada, mulher... 

Um e outro vão tentando lutar contra as marés que os tentam afogar, contra os revezes que se multiplicam, contra o destino que parece divertir-se a tornar cada vez mais penosas e insuportáveis as suas vidas - mais a de Calamity na verdade, que esconde o seu género para ser admitida no exército, é capturada por índios, escravizada...

Com os dois na boca de cena, em fundo mas ainda perante os nosso olhos Lamontagne e Gloris fazem desfilar um Oeste Selvagem que faz jus a este apodo, apesar de serem mais selvagens os brancos que o querem civilizar do que os pele-vermelhas que nele já habitavam.

Porque, se aos olhos dos brancos a selvajaria dos autóctones era insuportável, a incapacidade de se verem a si próprios, ávidos de ouro, insensíveis ao sofrimento, embrutecidos pelo álcool, o falso poder concedido pelas armas de fogo, impede-os igualmente de perceberem quem são os verdadeiros selvagens. Podemos desconhecer alguns aspectos das suas vidas, podemos questionar algumas das opções ficcionais (...?), mas não podemos ficar indiferentes à força que emana de cada um deles - Calamity e Wild Bill - à forma como fazem frente às adversidades - que são muitas, algumas abomináveis, diversas de uma violência visceral.

E é por isso que, quando certos limites são ignorados pelos homens, o belo traço realista que serve de base a esta série se torna incómodo e quase repugnante pela crueza do que mostra, do que retrata, do que expõe...

Do ponto de vista formal, se a opção de quatro tiras (baixas) por página aumenta a densidade narrativa e deixa no final a sensação uma leitura mais extensa do que o esperado, em determinadas cenas, pedia-se aos autores a ousadia (?) de quebrarem o seu modelo base em vinhetas de dimensão acrescida que aumentassem o seu impacto.

Mas se do ponto de vista estético o leitor ganharia com essa opção, o que na verdade interessa aos dois autores é a natureza do ser humano - e essa não vai lá com desenhos bonitos e chamativos. É por isso que concluo com a segunda parte da citação que abre este texto:

'Estou aqui apenas para esquecer toda essa merda.'

Wild Bill in Wild West #2

Wild West #1 - Calamity Jane
Thierry Gloris (argumento)
Jacques Lamontagne (desenho e cor)
Ala dos Livros
Portugal, Setembro de 2021
235 x 310 mm, 56 p., cor, capa dura
14,90 €

(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. ...mas essa merda não é para esquecer...Excelente BD, com a qualidade gráfica a que já nos habituou a Ala dos Livros. Muito bem desenhada e com um argumento que nos agarra da primeira à última prancha e nos deixa com vontade de mais..esse mais que sai precisamente hoje, na Bélgica, com o título de Escalpes em Série

    ResponderEliminar