30/05/2022

Sara

A paciência do predador


Entre o aproveitamento do momento ou as coincidências em que a vida é fértil, a verdade é que, directa ou indirectamente, a Rússia continua a aparecer na banda desenhada. A par da óbvia biografia A Rússia de Putin, em poucos dias tivemos o gulag siberiano como local de acção em LittleTulip e, distribuído a partir de hoje pela G. Floy, surge este Sara.
Ambientado no início da década de 1940, durante o segundo e rigoroso Inverno do cerco das forças do eixo a Leninegrado, é uma história de guerra - porque é durante a guerra que ela se passa e é guerra que ele narra - mas é-o muito menos do que um rápido folhear ou uma leitura descuidada poderão fazer intuir.

O relato centra-se num pequeno e invulgar comando, em acção na frente russa. Não só por ser composto por sete mulheres, mas porque todas elas são atiradoras furtivas de elite. Por isso, boa parte dele tem a ver com a sordidez e a violência interior da sua função: a preparação, a escolha da posição, a camuflagem, a espera, a escolha do alvo, a preparação do tiro, o apontar e, finalmente, a precisão do disparo. Muitas vezes, longas horas a aguardar para um sucesso de segundos. E muito tempo para pensar, considerar, reflectir. E deixar que as dúvidas surjam.

E é neste ponto que Garth Ennis, nascido na Irlanda do Norte e um dos mais conceituados argumentistas de comics, marca pontos e faz a diferença porque, se as sete mulheres criaram laços fortes, uma verdadeira união e no terreno estão prontas a arriscar a vida pelas outras, interiormente não poderiam ser mais diferentes. Desde a fanática soviética à cumpridora de ordens, da que deixa que os seus medos a dominem à que, cada vez mais, póe em causa tudo e, principalmente, o que faz - ou para quem o faz.

Esta última é Sara, "die rote hündin" (a 'cadela vermelha') na designação dos alemães, cujo passado, percurso e motivações vamos conhecendo aos poucos, em saltos temporais intercalados com a narrativa principal. Conhecido também pela violência patente da sua escrita, Ennis é aqui mais súbtil, apostando num incómodo latente, em crescendo, em que a violência cirúrgica do tiro furtivo, é só uma das faces de uma moeda que do lado oposto apõe as mentiras institucionais, as dúvidas existenciais e o questionar de tarefas e valores que em tempos foram absolutos.

E fá-lo, sem expurgar um relato de guerra daquela que deve ser uma das suas principais características, a acção, construindo-o de forma substantiva e consistente até ao clímax quando Sara e as suas companheiras têm de enfrentar o atirador nazi chamado para as eliminar.

Se a entrega do desenho a Steve Epting, conhecido pelo seu traço de base fotográfica, por isso mas pouco dinâmico, pode surpreender, a verdade é que o hiper-realismo que a sua técnica lhe aporta se revela ideal para retratar a tensão sempre presente, a lentidão dos processos e a paciência do predador face à presa em que assenta toda a narrativa.


Sara
Garth Ennis (argumento)
Stece Epting (desenho)
Elizabeth Breitweiser
G. Floy
Portugal, Maio 2022
180 x 275 mm, 152 p., cor, capa dura
20,00 €

(versão retocada do texto publicado no Jornal de Notícias de 26 de Maio de 2022; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar no texto a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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