14/06/2022

Armazém Central (volume final)

Saudad
es do futuro





18 meses, nove (cinco) álbuns, dois Invernos e mais de 700 páginas depois, chega ao fim a edição portuguesa da Arte de Autor de Armazém Central, uma das mais sublimes crónicas aos quadradinhos que a banda desenhada nos ofereceu neste século.

Tem lugar no Canadá, em Notre-Dame-des-Lacs, na década de 1920, e começa quando uma pequena comunidade rural perde uma das suas referências, o dono do único armazém da povoação. Com a existência ameaçada, a população recebe com surpresa e desconfiança a solução encontrada por Marie, a viúva: assumir ela o negócio que até aí era do marido. Porque ela é mulher e porque as mulheres são para ficar em casa a tratar dos filhos ou para trabalharem no campo quando os homens vão para os bosques. A esse primeiro sinal de mudança, outros se irão juntar, nomeadamente a chegada de um estrangeiro, Serge, que correu meio mundo e traz hábitos diferentes.

Crónica rural, terna e divertida, sensível e muito humana, Armazém Central serviu a Loisel e Tripp para, acima de tudo, nos falarem da vida, da sociedade, das cedências, das descobertas, das desconfianças, dos avanços e recuos, das surpresas e das relações, de religião e política, de trabalho e de lazer, num tom tranquilo e meigo, que nos levou a (re)conhecer Marie e Serge, sim, mas também Gaëtan, Adèle, os irmãos Latulippe, as beatas da aldeia, Noël, o padre Réjean e outros que já sentíamos como parte da família...

Neste díptico final, mais do que unir pontas soltas ou terminar em apoteose, Loisel e Tripp, com vinhetas sobrecarregadas de diálogos que guiam o leitor ao longo da página contra convenções e hábitos para se focarem no que é mais importante ou em pranchas mudas em que os olhos se espraiam em busca dos pormenores deliciosos, continuam apenas a narrar a vida em Notre-Dame-des-Lacs tal e qual ela é: verdadeira e profundamente humana, com os extremos que se tocam, os altos e baixos que todos temos, os ventos de mudança e de progresso, lentamente a fazerem o seu trabalho.

[Havia muito mais a evocar e/ou dessecar desta série, mas não o quero fazer aqui; fui escrevendo sobre ela conforme foi sendo publicada, procurem esses textos nesta ligação, mas acima de tudo façam a sua leitura.]

Como brinde - ou profunda maldade - encerram este livro com um álbum fotográfico da década seguinte, espreitando apenas nos instantâneos fotográficos o que aconteceu depois, deixando-nos a nós, leitores, saudosos dessas histórias futuras não contadas...


Nota final

A aposta da Arte de Autor foi corajosa, ao pegar numa série que tinha três volumes publicados década e meia mais cedo por outra editora. O dar continuidade ao já editado revelou-se acertado - e permitiu voltar depois ao início e ter no catálogo - e disponibilizar aos leitores actuais - a série completa. E que série!

Ter tido o privilégio de a traduzir, possibilitou-me um outro nível de leitura que só conhece quem o experimenta. Não costumo fazê-lo, mas desta vez não resisto porque me sinto um bocadinho responsável pelo sucesso alcançado: em boa hora sugeri a edição de Armazém Central à Arte de Autor e vê-la integralmente editada é também motivo de orgulho para mim.


Armazém Central (vol. 5)
#8 As mulheres / #9 Notre-Dame-des-Lacs
Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Arte de Autor
Portugal, Maio de 2022
227 x 302 mm, 192 p., cor, capa dura
37,00

(versão retocada do texto publicado no Jornal de Notícias online de 3 de Junho de 2022 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar no texto a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

2 comentários:

  1. Mais uma louvável iniciativa da Arte de Autor que me parece uma editora muito virada para a sensibilidade e humanidade dos argumentistas e para a beleza estética da arte gráfica dos desenhadores escolhidos. Obrigado também ao Pedro pela excelente sugestão.

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