02/08/2022

Eu, mentiroso

Desacreditar quem governa


'Uma mentira transforma-se em verdade quando todo o mundo acredita nela"

In Eu, mentiroso


Maquiavel escreveu que "Governar é fazer acreditar". Esse é também o propósito de Adrián, a personagem central deste livro, enquanto porta-voz ou conselheiro para a comunicação do(s) partido(s) para que trabalha.

"Eu, mentiroso", é uma divagação surrealista mas bem real pelo mundo da política espanhola e pelos seus meandros, aparentemente com o propósito único de desacreditar quem governa - mas desenganem-se os que pensam que conseguem delimitar o que é narrado a um simples território ou sequer a um dos quadrantes do espectro político. Basta aliás ver a facilidade com que Adrián, perto do final, se transfere do partido no poder para o da oposição que vai passar a exercê-lo...

Mas comecemos pelo princípio. Depois de Eu, assassino (Arte de Autor, 2016) e Eu, louco (Ala dos Livros, 2019), Eu, mentiroso encerra a trilogia do Eu, assinada por Antonio Altarriba e Keko e, curiosamente, até começa com contornos policiais, quando a cabeça de três membros do partido no poder, sob investigação e com grandes probabilidades de serem condenados, surgem dentro de frascos de vidro - mas esse tom inicial é rapidamente ofuscado pela crónica política.

Com o caso abafado, toma o protagonismo um cinismo imenso, tentacular, que revela como a política se transformou no jogo da imagem e das aparências em vez de servir o país e o povo. Por isso, tudo se centra em Adrián, porta-voz do partido, a sua iminência parda, responsável pela informação e pela desinformação que chega aos media... E às pessoas. Para isso, multiplica artimanhas para apresentar como boas medidas a redução do orçamento da justiça, a manipulação da informação ou das sondagens, a valorização do seguidismo partidário e não da capacidade individual demonstrada. Ou para fazer cair no esquecimento a obtenção de lucros pessoais por quem governa, a sua participação em negócios imobiliários ou os benefícios concedidos a grandes grupos empresariais...

Com a acção a decorrer em Espanha, entre o País Basco e Madrid, combinando factos reais, cujos ecos nos chegaram, com a denúncia ficcional - ou não? - Eu, mentiroso infelizmente podia decorrer em qualquer democracia ocidental e a corrupção, a intriga, a traição e os jogos de influência que retrata vão bem para além do governo espanhol que retrata e da comissão europeia que é aflorada de passagem, tudo servido com um olhar a um tempo acusador e desencantado e uma ironia triste, espelhada, por exemplo, quando a demissão forçada do chefe de governo se discute a 12 numa mesa comprida, onde se prodigalizam juras de fidelidade eternas...

Alguns até poderão considerar que este é um retrato exagerado e absurdo, mas a caricatura e e as hipérboles sempre fizeram parte da crítica social e de costumes - e cada um de nós, com facilidade, recordará casos incomodamente similares aos narrados aqui...


Nota final

Se noutras alturas tenho justamente destacado o trabalho editorial da Ala dos Livros, parece-me que nesta caso tem uma (pequena) mancha: o 'esquecimento' de que há outras obras dos autores publicadas em Portugal, nomeadamente as duas outras partes desta trilogia - mesmo que por outras editoras...


Eu Mentiroso
Antonio Altarriba (argumento)
Keko (desenho)
Ala dos Livros
Portugal, Junho de 2022
210 x 270 mm, 168 p., preto, branco e verde, capa dura
24,90 €

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 23 de Julho de 2022; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

1 comentário:

  1. Este livro devia fazer parte do Plano Nacional de Leitura para que, desde cedo, os nossos jovens tomassem consciência de como somos todos enganados

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