26/06/2023

Porra… voltei!

Porra!


'O que aconteceria se Jesus de Nazaré regressasse a este planeta? (…)
O leitor já alguma vez se interrogou sobre o que poderia acontecer?
Claro que sim. E eu também.'
Álvaro, na contracapa de Porra… voltei!


Mas, tendo pensado no assunto, Álvaro não nos revela o que pensou…
Porra!, isso não invalida que este livro seja absolutamente a ler.

Ou talvez tenha sido algo injusto com o que escrevi acima, mas a resposta de Álvaro, que é como quem escreve, a reacção de Jesus de Nazaré, não é a esperada. Longe disso.

[E a partir daqui, é provável que surjam algumas revelações excessivas sobre a narrativa… prossigam por vossa conta e risco.]


Volto um pouco atrás.

Não sei como definir este livro: cruzada anti-religiosa (ou anti-religião), crónica desencantada e demolidora da situação do nosso mundo ou algo mais?

Neste regresso aos livros, afastando-se do seu registo hiper-humorístico, mas sem deixar de demonstrar uma verve satírica impiedosa, Álvaro só nos deixa um comentário: Porra!

Porra! O que andamos nós a fazer…?

Porque este grosso livro é uma excelente reflexão sobre o nosso mundo. Excelente porque profunda e demolidora sobre a sociedade e as suas organizações mais representativas (ou poderosas…)

Mas, voltando à minha premissa inicial Porra… voltei! até podia dispensar o protagonista. Ou melhor, ESTE protagonista. Não sei se a explicação cabal virá num próximo volume - que o desfecho indic(i)a ou até pede em altos berros - mas a verdade é que quem lê o resumo que o próprio autor fez, possivelmente esperará outra coisa. Ou mais.


Volto atrás: na base de Porra… voltei! está o regresso de Cristo à terra após 2000 anos de ausência. Não ressuscitado, como anseiam muitos dos seus seguidores, mas devolvido pelos extraterrestres que há 20 séculos o tinham abduzido.

Aqui chegados, lendo até o que escreveu na contracapa, poderíamos achar que Álvaro podia ter optado por um registo mais contido, apostando nas diferenças - abissais… - entre o que Jesus pregou e os que se apossaram do seu nome praticam. Porque, tenho de sublinhar, a Igreja Católica - é dela que se trata… sempre - não é detentora absoluta do rótulo de ‘cristã’ nem os seus ensinos são - claramente - demasiadamente (?!) baseados no que a Bíblia regista, apesar do que muitos pensam…

Mas não, o caminho não foi este, a opção de Álvaro foi outra. O seu ‘Cristo’ é diferente do bíblico; para além de perdido num tempo que não reconhece, é imortal e está sedento por sexo (que não teve durante dois milénios…) Francamente, passa quase ao lado daquela que parecia ser a questão fulcral indicada pelo resumo: o que fizeram os seus seguidores com a sua mensagem? E ao fazê-lo, esvazia-se da sua essência e esvazia também a sua suposta missão/reacção.

Porque Álvaro - e a opção é tão válida como qualquer outra - preferiu avançar pelo caminho da denúncia - ou das denúncias. E denuncia a tragédia dos migrantes. E denuncia os flagelos da escravidão sexual e da escravidão tout court (infelizmente de novo mediatizada nos últimos dias). E denuncia o racismo, disfarçado ou orgulhoso e prepotente. E, cereja no topo do (seu) bolo, coloca a igreja (Católica Apostólica Romana) como píncaro da organização que orquestra, planeia e explora os migrantes, na origem de toda aquela violência, da forma inumana e bárbara como a dita civilização trata aqueles que são diferentes…

Volto a sublinhar: os dois caminhos, díspares (mas não contraditórios) são legítimos. A questão religiosa de base ou a questão social, estruturante. Uma ou outra poderiam ter originado um tom mais forte e acutilante.

Temo que, ao contornar a primeira, usando a presença de Jesus apenas como pano de fundo, e ao explorar a segunda com alguma falta de contenção, compreensível num registo mais humorístico do que este realmente é, acaba por atenuar alguma da violência e da virulência da denúncia e tenha perdido algum do vigor da narrativa e dividido até a atenção do leitor por ambas as vias.


Mas, cuidado. Tudo isto, não significa que não devam ler Porra… voltei! Pelo contrário, devem ler, sim, aproximando-se do livro sem ideias pré-concebidas e abertos ao que Álvaro nos quer dizer. Porque diz muito e muito importante e este será um dos livros nacionais do ano.

Porque a sua denúncia - as suas várias denúncias - são actuais e prementes e se as situações surgem aqui de alguma forma caricaturadas, na verdade são tão ou mais chocantes e incómodas do que o autor mostra.


Acrescento ainda: o traço de Álvaro é aqui uma boa surpresa. Não sempre, mas quase, surge mais trabalhado, com boas adições de cinzentos e algumas sequências que, fugindo ao traço mais cartoonesco que lhe associámos, revelam capacidades gráficas e narrativas que até hoje desconhecíamos. Também por isso, o livro merecia uma dimensão maior, para as vinhetas poderem respirar e poderem ser mais vincados - e, por isso, mais eficientes na divisão e no aligeirar do peso da mancha gráfica na página - os espaços (brancos ou pretos…) que as separam e fazem os leitores pensar.


Porra… voltei!
Álvaro
Insónia
Portugal, Junho de 2023
166 x 235 mm, 320 p., pb, capa cartão com badanas
27,99€

(imagens disponibilizadas pela Insónia; clicar nesta ligação para ver mais ou nas aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. mmhhh, acho que não existe a palavra "Porra" em Aramaico, o Álvaro devia ter empregado era o "F***-se", que é mais universal e existe desde a aurora dos tempos, mas boa tentativa, vou comprar, o dinheiro não estica, mas entre dar mais dinheiro aos herdeiros-chulos do Pratt e incentivar a progressão artística do Álvaro, decidi-me por este último.

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