15/09/2023

Alvar Mayor I

Final da viagem no ponto de partida


Em Alvar Mayor, uma estranha combinação de realidade, sonhos - e pesadelos… - é o ponto de partida para uma longa saga que tem como pano de fundo tanto a descoberta do novo mundo pelos conquistadores espanhóis, para alimentarem a sua insaciável sede de ouro e riquezas, quanto o desejo de viver o quotidiano sem pressões.

Com data original de 1976, descobri Alvar Mayor, na revista espanhola Cimoc nos anos oitenta - há muito tempo, portanto… - de forma pontual, ao sabor do ritmo da publicação que, como descobri agora, não seguiu qualquer ordem lógica nem cronológica.

Seduzido então pelas histórias de Trillo e pelo traço de mestre de Breccia, o Enrique, o reencontro agora com esta singular personagem - e com tudo o que acontece à sua volta - confirmou todas as qualidades que eu lhe atribuía e ainda foi capaz de sublimar outras que o tempo tinha feito esquecer, que a memória não retivera ou que o leitor que eu era então não foi capaz de apreciar.

Aos acontecimentos quotidianos, que vão tendo lugar sob o manto diáfano da loucura conquistadora em busca do mítico El Dorado, Trillo acrescenta o fascínio incontornável pelas civilizações locais, os misteriosos poderes de alguns dos seus feiticeiros, o contraste entre a (dita) civilização que se tenta impor e a (pretendida) selvajaria dos povos bárbaros locais, embora na realidade, muitas vezes, não saibamos de que lado estão uma e outra…

E tudo isto, assente como um peso insustentável nos ombros do homem que dá nome à série, um dos primeiros brancos nascidos no Novo Continente que, acompanhado primeiro por um índio e depois por uma bela mulher, se apresenta como o guia por excelência para procurar riquezas ou sonhos inatingíveis em histórias que exploram esta base, de forma incerta e raramente literal e se deixam espraiar ao sabor da inspiração - que é muita! - dos seus autores.

Enrique Breccia serve os argumentos humanos, fantásticos e socialmente opinativos de Trillo com um traço magnífico, feito de contrastes profundos de branco e negro. Ou, noutras pranchas, mais exatamente, de negro e branco, com a falta de cor ou o excesso de luz a pontuarem páginas quase imaculadas, só feridas aqui ali com riscos negros, quase invisíveis ou mais vincados que, apesar de parcos, revelam com uma técnica imensa e uma qualidade superlativa, com invulgar nitidez, todos os pormenores, todos os contornos, a altura ou profundidade, de tudo aquilo que é proposto aos nossos olhos de leitor (extasiado) descobrir e apreciar.

Em Alvar Mayor - com ele… - podemos encarar o simples dia-a-dia, encontrar o seguir dos sonhos de um cego, um anão que acredita que será rei, assistimos ao concretizar de lendas, duvidamos dos nossos olhos e aprendemos que a vingança não é tão doce quanto parece e que após ela o sabor amargo continua.


Em tempo útil

Já com este texto escrito e a respectiva publicação sucessivamente adiada, acebei de ler o volume 2 de Alvar Mayor.

Por incrível que pareça, nele a arte de Breccia e a escrita de Trillo estão ainda mais depuradas e surpreendentes e o sucessivo afastamento do real nas variadas narrativas, torna-as ainda mais humanas e sedutoras. E, como cereja - ou a fruta que for mais do vosso agrado - no topo de um bolo já de si delicioso, este segundo tomo de três encerra com o tríptico Las tres muertes de Alvar Mayor, em que o protagonista - e nós, leitores, com ele - é confrontado com três possíveis - e prováveis - fins para a sua existência, todos lógicos e coerentes e que servem para nos recordar a vanidade da nossa existência.


Alvar Mayor, vols. 1 e 2
Carlos Trillo (argumento)
Enrique Breccia (desenho)
Dolmen Editorial
Espanha, Fevereiro/Abril de 2023
210 x 280 mm, 248 p. (cada), pb, capa dura
34,90 € (cada)

(imagens disponibilizadas pela Dolmen Editorial; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

3 comentários:

  1. Aí está uma obra que valia muito ser publicada de forma integral por cá, apesar de alguns episódios terem sido publicados nas Selecções BD série 2. Esta e muitas outras com origem no mercado argentino. Vivemos um momento único da publicação da banda Desenhada que seria enriquecido em termos mais obras provenientes dessa latitude.

    Letrée

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  2. Sim, seria uma excelente proposta para os leitores portugueses, assim como outras obras com a mesma origem argentina. De onde até já tivemos direito a Spaghetti Bros., do mesmo argumentista de Alvar Mayor...
    Boas leituras!

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  3. Ora aí está uma obra que vou ter que comprar, precisamente essa edição espanhola. Uma vez que não se encontra por cá disso.

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