04/09/2023

Moby Dick #1

Deslumbramento e força


Acredito que todos nós, leitores inveterados, temos uma - ou geralmente mais - obra(s) que consideramos imprescindíveis e que queremos absolutamente ler - e ter! - mas cuja aquisição/leitura, por um motivo ou por outro, fomos retardando.
Sei também que o bom senso me diria para aguardar pelo segundo volume de Moby Dick antes de escrever sobre este, para que a avaliação reflectisse a obra completa, mas o deslumbre que me provocou e a força narrativa que ele exala forçou-me a trazer já a As Leituras do Pedro uma das tais obras há muito na minha lista, cuja oportunidade de compra nunca se tinha proporcionado.

Escrevi ‘deslumbre’ atrás e ele foi - é! - provocado pelo preto e branco de Chabouté, génio na utilização de contrastes profundos de negro em fundo branco (ou vice-versa), no rasgar da luz com ténues, fortes traços negros ou manchas difusas de sombreado, no dissipar das trevas com manchas, borrões ou nódoas alvas que, em conjunto, mostram cidades, compõem personagens, constroem barcos, desenvolvem ambientes, dão expressividade às faces, dinamismo aos corpos e transmitem movimento, nos levam a sulcar os mares ou nos contam tanto, tudo, sem uma única palavra.

Se acham excessivo o que acabo de escrever, peguem neste Moby Dick #1, vão até à página 92 e atentem nela e na dúzia de páginas que se seguem. Sem um som escrito, sem uma palavra expressa, sem um grito, um queixume, um som abafado, Chabouté faz desfilar perante os nossos olhos a barbárie da caça e morte de um cetáceos e o seu posterior esquartejamento para aproveitamento das ‘matérias nobres’ ambicionadas pelos baleeiros. Não há um único som, escrevi e vinco de novo, mas a sequência é ensurdecedora, com os gritos quase selvagens dos caçadores, os uivos de terror da presa, o descarregar da adrenalina nos festejos incontidos, incontroláveis dos marinheiros; e depois, na conversação de circunstância que se adivinha durante as tarefas rotineiras…

Mas, escrevi também acima que, para lá dos deslumbre gráfico, esta versão do clássico de Melville seduziu-me igualmente pela sua força narrativa. Numa adaptação que transpõe para um novo suporte um original volumoso, muito descritivo e de uma exploração sublime do mais profundo das almas dos seus protagonistas, é exemplar a forma como Chabouté, com enorme contenção de textos, apurados e concisos, consegue manter a dimensão humana, especialmente centrada na loucura possessa do velho capitão Ahab, como expoente de uma galeria de figurantes especialmente rica, diversificada e forte, ao mesmo tempo faz explodir a sua narrativa no tom épico que também era apanágio do texto original.

Disse acima, ainda, que o bom senso aconselharia esperar pela leitura do segundo tomo, para garantir a avaliação do todo, mas a verdade é que, mesmo que escudado no conhecimento (teórico) prévio que já tinha desta versão de Moby Dick e conhecendo todo o talento do seu autor, Christophe Chabouté,, não podia deixar de me sentir obrigado a escrever já sobre o primeiro volume do díptico, para vos aconselhar, exortar, apelar com força de obrigação a irem comprar - se ainda não o fizeram - este tomo e o que se segue nesta sétima existência da coleção Novela Gráfica.


Nota final sobre a edição

Temos por vezes ideias feitas - e os ‘maus’ exemplos recentes levam-nos a exigir sempre mais.

É evidente que este Moby Dick de Chabouté merecia uma edição integral, maior - gigante até! - papel de gramagem superior e, porque não, uns quantos ex-libris assinados e numerados… e até existe uma edição assim! Mas, para inclusão numa colecção como a Novela Gráfica, há pressupostos que têm de ser cumpridos, para garantir que o preço final é atractivo - mesmo que, naturalmente, mais elevado do que o das iniciativas homónimas anteriores.

Por isso, Moby Dick surge em dois volumes (tal como a edição original da obra), num formato (um pouco) menor que o da primeira edição francófona (190 x 280 mm contra 215 x 293 mm) e com um papel de gramagem superior ao de anteriores colecções da Levoir/Público, adequado e que suporta bem o belíssimo preto e branco de Chabouté.

É a edição ideal? Já escrevi que não. É legítimo procurar outras mais consistentes e ‘luxuosas’? Claro que sim. Mas esta é a possível e perfeitamente adequada à leitura e a única disponível em português.


Moby Dick #1
Colecção Novela Gráfica VII / 2023 #1
Christophe Chabouté
Prefácio de Pedro Bouça
Levoir/Público
Portugal, 31 de Agosto de 2023
190 x 280 mm, 128 p., pb, capa dura
13,90

(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

2 comentários:

  1. Já conheço esta obra há anos, e sim o volume 2 da Levoir será tão bom como o 1.
    Não tenho adjectivos que sejam suficientes para louvar o talento de Chabouté, este conseguiu adaptar uma obra que insiste em dificultar todas as adaptações que já foram feitas até à data, o artista conseguiu manter-se fiel ao espírito do clássico original, não é tarefa mesmo nada fácil.
    Chabouté seria aquele que eu gostaria de ver continuar as aventuras do Corto Maltese, na verdade muitas daquelas vinhetas fazem-me lembrar o incontornável A Balada do Mar Salgado.

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  2. Caro Pedro, algumas correções - este livro tem diversas edições em vários mercados - espanhol, francês, inglês, italiano, alemão, etc... todas (sim, todas..) em formato integral, inclusivé a edição em português do Brasil da editora Pipoca e Nanquim (uma belíssima edição, diga-se de passagem). Na minha opinião esta obra teria lugar fora da coleção Novela Gráfica pelas razões já apontadas si. É de lamentar que nenhuma outra das editoras nacionais tenha sido capaz de trazer esta e outras obras do autor para o seu catálogo e assim se veja "rebaixada" para uma coleção de banca. O autor, a obra e os leitores mereciam mais.

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