26/10/2023

Astérix: O Lírio Branco

Subversão e respeito



Ancorado na actualidade - como Goscinny sempre fez - O Lírio Branco está desde hoje à venda, marcando a estreia na série do argumentista Fabcaro, o que fez aumentar as expectativas em relação ao novo álbum, que se desenrola entre subversão das regras e enorme respeito pela pesada herança dos criadores da série.

A primeira constatação, é o desvio à regra implícita que ‘obriga’ a alternar uma aventura caseira com uma aventura exterior. “O Lírio Branco” arranca na aldeia gaulesa, mas a certa altura os protagonistas viajam até Lutécia, numa pouco vulgar dupla localização do cenário.

Outra característica da nova história, nalguns casos referida até pelas próprias personagens, é que evoca, em jeito de homenagem, várias cenas de álbuns anteriores, da fase Goscinny. Lendo-o, é impossível não recordar, sem ser exaustivo, a viagem para as termas para curar o chefe Matasétix, em “O Escudo de Arverne”, a corrida desenfreada pelos corredores da pirâmide em “Astérix e Cleópatra”, ou “A Zaragata” e o intriguista Tulius Detritus, embora onde este semeava a discórdia, no presente álbum Palavreadus prega a harmonia e a paz a todo o custo.

Médico-chefe dos exércitos romanos, o vilão de serviço pelo período deste álbum, defende o Lírio Branco, uma corrente de pensamento positivo, disparando aforismos bacocos a torto e a direito, como "Um problema deixa de o ser quando tem solução" ou “Todos os caminhos são bons, pois todos levam a algum lado".

Assumidos geralmente como grandes princípios de vida - o que não abona muito a favor dos seus ouvintes, sejam eles romanos ou gauleses - são a crítica mais forte e mordaz aos dias de hoje num relato bem ancorado no nosso tempo que também refere a praga das trotinetes (numa sequência pouco feliz), a necessidade de exploração dos recursos locais (possivelmente o melhor de O Lírio Branco, centrada no peixeiro Ordemalfabétix), a questão da igualdade de género (no banquete final), a nouvelle cuisine ou as modas que põem “metade a fazer exercício físico e a outra metade a comer sementes e peixe”.

Na primeira parte da história, principalmente, Fabcaro apresenta trocadilhos bem conseguidos e uma série de provocações inteligentes às próprias referências imutáveis da série, que dispõem bem e colocam O Lírio Branco como um dos conseguidos no período pós-Goscinny, mas a narrativa arrasta-se um pouco na segunda metade, quando se centra nos problemas de relacionamento do chefe Matasétix e da esposa Boapinta, durante a viagem.

Graficamente, tal como já evidenciava o álbum anterior, Didier Conrad, sem ter provocado qualquer corte com a herança de Uderzo, já a converteu ao seu estilo próprio, dinâmico e expressivo e as diversas soluções que utiliza são eficazes em termos narrativos.

De leitura bem-disposta, “O Lírio Branco”, tem o mérito de recordar alguns dos álbuns basilares da série e de nos transportar mais uma vez até à aldeia dos loucos, perdão “das pessoas diferentes de nós devido ao seu comportamento imprevisível", como diz Palavreadus.


Astérix: O Lírio Branco
Fabcaro (argumento)
Didier Conrad (desenho)
ASA
225 x 296 mm, 48 p., cor, capa dura
11,50 €

(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 26 de Outubro de 2023; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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