05/02/2024

Clássicos da Literatura Portugueses em BD - Entrevista com Pedro V. Moura e Susa Monteiro




Entre a publicação de Mensagem, primeiro volume da nova colecção Levoir/RTP, Clássicos da Literatura Portugueses em BD, no passado dia 23 de Janeiro, e o lançamento do segundo, Farsa de Inês Pereira, já amanhã, dia 6, depois da curta entrevista com Sílvia Reig, seguem-se as feitas com Pedro V. Moura e Susa Monteiro, os autores daquela primeira adaptação.


As Leituras do Pedro -
A escolha da Mensagem foi tua ou da editora?

Pedro V. Moura - A obra inteira do Fernando Pessoa fazia parte da lista alargada de textos a considerar, mas tive o privilégio de poder discutir com a editora as várias possibilidades e estratégias, e por uma questão de prioridades, clareza e tempo, achámos bem dedicar-nos à obra mais famosa.


As Leituras do Pedro - E a escolha da Susa para a ilustrar?

Pedro V. Moura - A escolha dos artistas foi sempre feita em diálogo com a editora, naturalmente. Mas foi igualmente uma honra e prazer poder trabalhar com a Susa, que admiro há anos.

Susa Monteiro - Foi da editora. Foi-me proposta esta obra, que à partida me parecia muito difícil de adaptar. Mas felizmente o Pedro entregou-me um guião muito claro e muito rico em propostas gráficas.


As Leituras do Pedro
- Já conhecias a obra? O que trouxe adaptá-la?

Pedro V. Moura - Sim, claro. A minha área de formação foram os Estudos Portugueses e Literatura Comparada, e fui mesmo professor de língua portuguesa, por isso "dei" algumas destas obras no secundário e outros níveis de ensino. Claro que há obras com as quais tenho maiores afinidades ou familiaridade do que outras, mas uma oportunidade desta natureza leva-nos a ler os textos de uma maneira muito particular, com uma atenção redobrada para outro tipo de ciclos de significado, ritmos internos, ecos de imagens, etc., que depois procuramos tornar visíveis através das escolas específicas à banda desenhada (figuras, composições visuais, estruturas das páginas, cores, etc.).

No caso da Mensagem, há tanto dimensões mais "fáceis" (a possibilidade de reempregar os textos na íntegra, sem alterações), o papel que tem na construção de uma certa identidade "clássica" da portugalidade, como outras mais desafiantes (reinterpretar a contrapelo do texto ou expectativas, relançar outro tipo de associações internas, redistribuir os textos graficamente propondo outras respirações da leitura em voz alta, etc.).

Susa Monteiro - Já tinha lido a Mensagem no liceu e voltei a lê-la apenas antes de começar a trabalhar no livro. Aceitei o convite da Levoir porque encarei este convite como uma oportunidade para desenhar finalmente um álbum de banda desenhada. Como a adaptação era do Pedro Moura, soube que teria todo o apoio necessário para fazer um bom trabalho.


As Leituras do Pedro - Se a escolha fosse livre, sem limitações, que obra escolhias para adaptar?

Pedro V. Moura - As escolhas desta colecção são compreensíveis, dada a importância aos dois factores principais: disponibilidade legal dos textos, sem direitos de autor, e a sua relevância no programa do ensino regular da literatura portuguesa. Existirão outros títulos interessantes que têm direitos e implicariam outra estratégias comerciais, e outros ainda que são maravilhosos mas relativamente "obscuros", face ao facto de que os portugueses lêem pouco, lêem menos literatura ainda, e não há uma grande permanência de certos textos históricos, que acabam por "desaparecer" do mapa das nossas referências mais comuns. (Se bem que podia dizer que também muitas vezes as pessoas citam autores, mas não os lêem; não creio que os portugueses andem sempre a ler Pessoa....).

Dito isto, já estive ou estou envolvido em projectos de adaptação literária, sobretudo poesia, mas houve um caso de um romance moderno, mas que depois foi por água abaixo. Ainda voltarei a um projecto que envolve o ciclo das cantigas de amigo do Martim Codax, de que gosto muito. E toda a nossa história da poesia, desde os tempos árabes, depois medievais, a poesia barroca e contemporânea, é extraordinária, não ficando aquém de nenhuma outra tradição. Temos também novelas medievais fantásticas (no sentido específico de "fantasia") que funcionariam muito bem para os leitores dos nossos dias. Quanto à prosa, sou suspeito, porque tenho uma maior preferência pela literatura moderna, mais densa, experimental, não-linear, pelo que pensaria em autores como Raúl Brandão (de que o Filipe Abranches fez uma adaptação magnífica com O Diário de K.), Carlos de Oliveira, Virgílio Ferreira, Fernanda Botelho, as ditas "três Marias", Herberto Hélder (sobre o qual o Diniz Conefrey trabalho tanto e tão bem), Rúben A., Jorge de Sena, o desafio que é a Maria Gabriela Llansol, o desbragado Luiz Pacheco. Nem falo do teatro, que já tem metade do caminho feito para a adaptação, que é outro manancial. Sobre autores contemporâneos, também tenho os meus favoritos, mas isso é outra conversa...

Susa Monteiro - Se tivesse que escolher uma obra portuguesa talvez gostasse de adaptar o livro Cão Velho Entre Flores de Baptista Bastos.


As Leituras do Pedro
- Como se adapta uma obras destas a BD? Quais as principais dificuldades?
Pedro V. Moura - Por um lado, digamos, tecnicista, não é difícil. Conseguimos ter todos os poemas, na íntegra, no número de páginas. Algo diferente de outras obras em que "cortar" é desde logo absolutamente necessário. Mas, claro está, as dificuldades estão em o que considerar "mostrar", uma vez que um meio visual oferece elementos não-previstos num texto literário, para mais um tão simbólico e lírico, e por vezes lírico E simbólico, como este ciclo de textos de Pessoa. Optámos por criar ciclos próprios ao livro de banda desenhada, através de personagens e elementos recorrentes, que criam uma espécie de narrativa paralela ao poema, que por vezes se intersecta com ele, diferenciar partes através de escolhas cromáticas e outras estratégias.

Susa Monteiro - Talvez a realização de alguns desenhos, mais complicados de conceber, com a utilização de planos picados e contra picados, etc. Precisei de desenhar alguns elementos que habitualmente não desenho, como o mar, por exemplo. Acabou por ser um projeto muito desafiante em termos técnicos o que o tornou muito mais interessante.


As Leituras do Pedro
- Como foi o vosso processo de trabalho?
Pedro V. Moura - Muito simples, na verdade. A Susa deu-me carta branca para fazer um argumento completo, que fiz, e depois ela foi desenhando tudo, adaptando ou alterando conforme achasse necessário. Foram muito poucas coisas que alterámos entre nós, e tinham a ver com acertos mínimos e correcções textuais.

Susa Monteiro - Foi um processo muito fluido. Foi fácil trabalhar com o Pedro.

Como foi o primeiro álbum que desenhei e o Pedro é um argumentista experiente pedi-lhe que me guiasse o mais possível.

Foi o Pedro que se preocupou com a narrativa e com sequência das próprias pranchas. Para mim foi muito importante, pois pude dedicar-me essencialmente ao desenho.


As Leituras do Pedro - Que expectativas tens?

Pedro V. Moura - Que as pessoas possam reler Mensagem de tal maneira que quase o lerão pela primeira vez, e que sejam atentos à dimensão de banda desenhada semi-autónoma em relação ao texto.

Susa Monteiro - Espero que o livro chegue a um público o mais vasto possível, chamando a atenção para o trabalho poético de Fernando Pessoa, mas também para as possibilidades gráficas e narrativas da banda desenhada.

Espero também que seja o primeiro álbum que desenho e que esta experiência me traga outras oportunidades para continuar a fazer banda desenhada.


As Leituras do Pedro -
Qual a importância de uma colecção como esta?

Pedro V. Moura - Não sou grande adepto de "simplificações" ou "reduções" de obras literárias a "bandas desenhadas didácticas" ou "explicativas", em que há apenas uma preocupação com as "intrigas" e "representação dos eventos" de um livro, mas estou seguro que temos aqui muitas prestações que são, em si mesmas, óptimas obras de banda desenhada tout court. Por outro lado, compreendo ao mesmo tempo a necessidade de aliar um veículo visto como mais "popularizante", uma vez que que fará parte da nossa identidade o esforço em manter vivo o nosso legado literário, mas igualmente transformá-lo. Dito isto, espero que haja novas colecções e que o escopo de escritores aumente para outras referências para além das do "tecido escolar".

Susa Monteiro - É uma coleção muito importante que tem o potencial de angariar novos leitores para banda desenhada portuguesa. Depois de uma coleção de clássicos da literatura internacional, desta vez as obras adaptadas são clássicos da literatura portuguesa, escritas e desenhadas por autores portugueses. Pela sua distribuição pode chegar a um público muito vasto e variado.


(versão integral das entrevistas, feitas em separado, que estiveram na origem do texto publicado no Jornal de Notícia de 23 de Janeiro de 2024; imagens disponibilizadas pela Levoir e por Susa Monteiro; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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