Cru e duro
Apresentar uma leitura comentada quando uma obra vai a meio - pronto, a três quintos... - é um risco, concedo sem problemas. No entanto, pelos ecos que foram chegando desde a publicação original da obra de Matthias Lehmann, até às constatações possibilitadas pela leitura parcial já efetuada, mesmo que incompleta, permitem afirmar que este é um dos livros de um ano que se tem revelado extremamente rico em obras que devem figurar na biblioteca de qualquer leitor (que goste realmente) de banda desenhada.
Mesmo assim, posso até concordar que não será para todos os que privilegiam a aventura, o humor ou os super-heróis como temáticas preferenciais, mas os que gostam de um bom livro e consigam abeirar-se dele de mente aberta e dispostos à descoberta só poderão considerar-se satisfeitos por poderem ler esta obra em português, reconhecendo mais uma vez todo o potencial que a banda desenhada tem para abordar qualquer temática.
Obviamente eu - quem não? - preferia ter lido Chumbo num tomo único, pesado e volumoso mas, por razões compreensíveis no âmbito da coleção Novela Gráfica, esta obra foi dividida em dois tomos e é assim que está disponível, com o segundo a sair já depois de amanhã.
Chumbo, é um retrato cru, duro e escabroso da sociedade brasileira de meados do século passado, tendo como base o estado de Minas Gerais - embora como parte de um todo igualmente afectado pela conturbada situação social e política. E esse retrato é-nos mostrado a partir do olhar da família Wallace, iniciada pelo patriarca, o poderoso industrial Osvaldo Wallace e prosseguindo com o dos seus filhos e herdeiros, Severino e Ramires, numa narrativa que se apresenta quase como geracional e hereditária, tantos - e tão maus...? - são os hábitos e as formas de actuar de pai e filhos, a um mesmo tempo sequiosos de poder (a diferentes níveis) e submissos a eles, sejam políticos, militares ou religiosos.
Se o pai - uma versão ficcionada do avô do autor - se revela um empresário à moda antiga, duro, explorador e interessado apenas no enriquecimento pessoal, os filhos trilharão caminhos diferentes, um enveredando pelo jornalismo e a escrita e professando ideais de esquerda, e o outro perfeitamente alinhado com os militares que instaurarão uma dura ditadura no território brasileiro, ignorando direitos e exacerbando os deveres (dos outros...) originando os chamados "anos de chumbo" de onde surge o título da obra.
A situação política indefinida e agitada, com golpes militares e contragolpes são um dos aspectos globais, que influenciam e marcam a vida dos protagonistas, ideologicamente muito distantes, quer pelas mudanças directas que provocam, quer também por aquelas que deles surgem, como uma violenta luta de classes, confrontos de ideias que facilmente chegam a vias de facto, a exploração indiscriminada em pirâmide, com todos a lamber as botas a quem está por cima e a espezinhar quem está mais abaixo na estratificação social, com foco nas ideologias por um lado e na utilização do sexo como moeda de troca, aproveitamento puro ou o centro de relações culpadas e vividas na sombra e com vergonha.
Sem personagens simpáticas ou com quem seja fácil - ou até possível - alguma identificação ou partilha, Chumbo acaba por ser uma obra que se lê com algum distanciamento. De certa forma quase se lhe poderia apor uma etiqueta de tom documental - que de certo modo está presente - pesem embora todas as emoções e sentimentos que os protagonistas experimentam, embora não os passando ao leitor, quer devido ao distanciamento temporal e geográfico que existe, quer porque não era esse o propósito do autor.
Numa leitura que indubitavelmente se revela pesada, porque o tema de base não é simples e existe muita informação factual, Lehmann utiliza diversas soluções gráficas, quer alterando frequentemente a planificação da prancha em favor da legibilidade para a tornar menos cansativa para o leitor, quer introduzindo nessas mesmas pranchas elementos como a rádio, capas de jornais ou até cartoons da época, para aligeirar a informação e fluidificar a leitura dentro do possível. Com o mesmo propósito, o autor utiliza igualmente sequências mudas que obrigam o leitor a um tipo de atenção - de leitura... - diferente.
Acreditando que os capítulos ainda em falta não alterarão esta minha leitura de Chumbo, não deixo de confessar bastante curiosidade em conhecer o destino dos ilustres membros da família Wallace.
Chumbo
- Parte 1
Matthias
Lehmann
Levoir/Público
Portugal,
28 de Setembro de 2024
195
x 270 mm, 224 p., pb, capa dura
14,90
€
(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem comentários:
Enviar um comentário