Perspectiva pessoal e subjectiva
Parece óbvio que, com alguma frequência, a atualidade condiciona a edição. Ou melhor, por vezes, propícia essa mesma edição. Não posso afirmar que seja o caso de Crónicas de Jerusalém, até porque as outras obras de Guy Delisle - Shenzem, Pyongyang, Crónicas da Birmânia - estão editadas em português, também pela Devir, mas é difícil olhar para este livro - ou para História de Jerusalém (Levoir, 2024) - sem ter em mente a actual situação bélica em Israel, na Palestina e nos países limítrofes. Mas se o contexto faz com que um livro que exiba 'Jerusalém' no título seja mais comercial ou chamativo, que isso sirva para levar a banda desenhada a outro tipo de leitores.
Autor de animação e de banda desenhada, Delisle é casada com uma mulher que pertence aos Médicos sem Fronteiras e foi neste contexto que o autor passou cerca de um ano em território israelita. Tal como nos livros anteriores, a estadia serviu-lhe para expor o que foi observando quotidianamente, nos passeios com os filhos pequenos, nas idas e vindas para fazer esboços ou nas deslocações diárias, num misto de recensão histórica, guia turístico, enciclopédia das religiões, apresentação factual de realidades observadas e apontamentos de ordem mais pessoal, estes últimos geralmente servidos com algum humor. E, se há aspecto que aprecio em Delisle, é a forma como ele consegue tornar absurdos momentos que parecem tudo menos isso. Desta forma, o autor canadiano cria um todo aparentemente heterogéneo mas com uma consistência assinalável, de leitura aparentemente leve mas que revela muito do que é a vida em Israel, em Gaza, nos colonatos ou na Palestina - e as razões para o estado de tensão e conflito latentes - ou efectivos - permanentes na região.
Se é verdade que não há da parte de Delisle o assumir de uma posição política nem a defesa de nenhuma das posições no terreno, alguns dos aspectos retratados, sempre sob uma óptica de perspectiva pessoal e subjectiva, ajudam a compreender a situação que se vive hoje, com a multiplicação de controles de passagem ou de visita a locais turísticos, a quase paranóia que rodeia a concessão de vistos de entrada ou a normalidade do porte de armas por toda a gente.
E se Crónicas de Jerusalém, que recebeu o troféu para Melhor Álbum de BD no Festival de Angoulême, em 2012, não ostenta as bandeiras políticas que muitos desejariam, enquanto retrato de comportamentos díspares e espelho de uma realidade diferente, revela-se um livro muito interessante sobre as diferenças e indefinições do ser humano.
Crónicas
de Jerusalém
Guy
Delisle
Devir
Portugal,
Novembro de 2024
170
x 240 mm, 336
p., cor,
capa dura
28,00
€
(versão revista do texto publicado na edição online do Jornal de Notícias a 6 de Dezembro de 2024 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Devir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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