15/07/2025

1629


Não deixem ninguém com vida

A 28 de Outubro de 1628, o Jakarta deixa Amsterdão. A bordo, entre tripulantes e os passageiros que buscavam novas vidas no Novo Mundo, seguiam 322 almas (para quem acredita nelas) não penadas (ainda...) mas que iriam penar duríssimas penas, mais do que é humanamente possível imaginar.

Mas, o mais relevante eram os 300 mil florins em ouro e jóias que a toda-poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) nele embarcara para estabelecer negócios em Java. E, involuntariamente, acicatar a avidez de uns quantos.

Este é o ponto de partida de 1629 ...ou a história apavorante de um naufrágio, cujo segundo volume acaba de ser disponibilizado pela Arte de Autor numa edição aprimorada, com o dedo conhecedor e inspirado de Mário Freitas, concluindo um relato terrífico livremente inspirado em factos reais.

Se o objectivo já parecia condenado à partida, pelas profundas desigualdades entre oficiais e tripulantes e entre estes e os passageiros, pelas crenças, vontades e aspirações díspares dos dois representantes da VOC, pelo tumultuoso feitio do capitão e pelo clima de suspeição, revolta e mesmo ódio latente que o contexto provocava, um naufrágio causado, mesmo que involuntariamente, quer pelo explodir do conflito latente, quer pelo desejo de riqueza de parte de alguns dos seres a bordo, acabará por reduzir todos praticamente ao mesmo nível social. Ou, para melhor descrever o sucedido, por arrastar todas aquelas almas para os degraus mais baixos e esconsos da natureza humana, perdidas num conjunto de ilhotas inóspitas e quase sem condições de vida.

Dessa forma, 1629 assume-se como uma descrição aterradoramente realista quer das inimagináveis faltas de condições de vida a bordo do navio, onde o capitão usurpa o lugar de um Deus sem amor, só impiedoso e castigador, quer do quotidiano na ilha, onde, mais uma vez, os desejos de poder e de riqueza, tristemente a par com um desejo de liberdade que perpassa por muitos, vai levar uma parte dos sobreviventes a perpetrar um abominável massacre.

Numa narrativa em que a violência, o sangue e o desprezo pela vida andam de mãos dadas com a submissão das multidões e a facilidade do olhar para o lado, Xavier Dorison e Thimothée Montaigne mesmo assim, chocam e violentam um leitor horrorizado por aquilo que os seus olhos testemunham e, mais, pelo que apenas é sugerido à sua imaginação doentia, mas incapaz de desviar o olhar, arrastado por uma escrita insidiosa, visceral e desafiadora e por um traço realista que exibe a animalidade humana de forma crua e despudorada.


1629 - vols. 1 e 2
Xavier Dorison (argumento)
Thimothée Montaigne
Arte de Autor
Portugal, Abrl de 2025
235 x 310 mm, 136/144 p., cor, capa dura
34,95 €/35,95€

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online de 4 de Julho de 2025 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Devir; clicar nesta ligação ou nesta para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

1 comentário:

  1. Excelente obra de BD, daquelas que nos agarram do princípio ao fim. Baseada em factos reais, aliás já tive oportunidade de visitar a réplica do BATAVIA, uma reconstrução do navio, construída entre 1985 e 1995 e que serve como navio-museu em Lelystad, nos Países Baixos, no Museu Batavialand. Perfeita edição da Arte de Autor, mais uma vez de parabéns não só pela oportunidade da publicação mas sobretudo pelo excelente gosto editorial

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