A parte e o todo
A excessiva mediatização e comercialização pode ter efeitos contrários aos (aparentemente) desejados (num mundo em que o dinheiro é o motor de tudo).
Deixem que concretize, para tornar mais claro o que escrevi. A transformação do Snoopy - apenas um dos integrantes de uma das mais marcantes bandas desenhadas da segunda metade do século XX - num ícone, numa das marcas mais conhecidas mundialmente, só acessoriamente trará leitores para a genial criação de Charles Schulzs e entres aqueles que utilizam o beagle como acessório de moda o merchandising, poucos a conhecerão.
Daí, a importância da sua presença constante e regular nas livrarias, em novas edições, mesmo que algumas tomem a parte pelo todo.
Relembro que o Snoopy é 'apenas' um dos co-protagonistas de uma série de tiras e pranchas de jornais, criada em 1950 por Charles M. Schulz e intitulada The Peanuts. Como co-protagonistas contam-se o seu dono Charlie Brown, Lucy Van Pelt, Linus, Sally, Schroeder, Woodstock e outros mais.
Foi a 2 de Outubro de 1950 que os leitores de alguns jornais norte-americanos descobriam pela primeira vez The Peanuts, um conjunto de crianças atarracadas e de cabeça grande, que protagonizavam mais uma tira cómica. Eles, e o seu criador, Charles M. Schulz, estavam longe de imaginar o sucesso que viria a alcançar aquela que viria a ser a obra de toda a sua vida.
A prova é que, 75 anos depois, assinalados há poucos dias, continuam a multiplicar-se as edições da série e mesmo uma leitura apressada permite constatar que mantém toda a frescura e assertividade da data da sua criação.
Uma das razões, possivelmente das menores, é o seu minimalismo gráfico, cujos elementos de cenário apenas servem de suporte ao humor das situações.
Por outro lado, a galeria de personagens, variada, bem representativa de todos nós e com elementos marcantes, coerentes e de quem sabemos (quase) sempre o que esperar, tem um peso fundamental para esse sucesso. Com eles, Schulz retratou as maiores inseguranças dos ser humano e os seus reflexos, da mediocridade de Charles Brown à prepotência e irritabilidade de Linus, passando pela dedicação à arte de Schroeder, pelo espírito livre de Peppermint Patty ou pela dependência de Linus. E, entre todos, a mutiplicidade de personagens assumidas por Snoopy, de escritor a às da aviação, inicialmente apenas um simples cão, que se revelaria de importância fundamental no conjunto.
E foi com eles que Schulz conseguiu o seu maior feito e o que torna The Peanuts uma série de referência, seja qual for o contexto em que se queira encará-la: olhar de modo a um tempo assertivo, sarcástico e mordaz para o quotidiano, transformando os pequenos nadas em grandes problemas e dando à repetição de cada situação banal - alimentar o cão, jogar basebol, falar da escola ou lançar um papagaio... - sempre um desfecho original e completamente inesperado.
Para assinalar a data, a Iguana acaba de fazer chegar às livrarias O Indispensável do Snoopy, título compreensível numa perspectiva comercial mas que toma a parte pelo todo, uma sólida colectânea de tiras e pranchas dominicais em que felizmente podemos reencontrar todos os Peanuts, complementada com diversos textos que enquadram e permitem redescobrir o âmago e a essência da criação de Schulz.
O
indispensável do Snoopy
Charles
M. Shulz
Penguin
Random House/Iguana
Portugal,
Putubro
de 2025
210
x 280 mm, 384
p., pb,
capa dura
30,95
€
(versão revista e bastante aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 11 de Outubro de 2025; imagens disponibilizadas pela Iguana; clicar nesta ligação para ver mais ou nas aqui representadas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)



Sem comentários:
Enviar um comentário