27/12/2010

J. Kendall: Requiem para uma criminóloga?

O título deste post refere-se à notícia, revelada no início de Julho, de que a revista mensal brasileira “J. Kendall – Aventuras de uma criminosa”, editada pelo Mythos Editora desde Novembro de 2004 e presença regular neste blog, podia chegar ao fim no nº 67, “devido às baixas vendas e aos altos custos redaccionais e gráficos”. A onda de pesar levantada, levou a editora a fornecer-lhe um curto balão de oxigénio garantindo a sua publicação até ao nº 71, datado de Outubro de 2010. “Era uma manhã tediosa. Daquelas invadidas por uma subtil inquietação. Uma sensação que eu sabia que ia durar o resto do dia, deixando cinzento até o meu humor. Há tempos eu já havia aprendido que basta pouco para modificar o próprio comportamento. Um acto de vontade pode impor uma lufada de optimismo capaz de iluminar o horizonte mais sombrio. Mas eu também sabia que era muito agradável deixar-se embalar por uma pitada de melancolia. É um modo para se colocar à espera. À espera que chegue alguma coisa ou alguém para movimentar a vida.” (In “Júlia #1”, Mythos Editora, Novembro de 2004, página 20. Não, não há engano no título da revista: intitulada “Julia” em Itália, esta série teve o mesmo título no Brasil, mas apenas durante os primeiros quatro números, tendo depois que ser mudado para o actual “J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga” para não ser confundida com uma outra publicação homónima, dedicada a romances cor-de-rosa.). Esta é a primeira vez que o leitor “ouve” os pensamentos de Julia – ou que os lê no seu diário, se preferirem. Acontece logo na edição de estreia, após uma longa (e dupla) sequência muda bastante violenta (um exemplo da dicotomia realidade/sonho, comum ao longo da série) e um entreacto mais ligeiro/cómico. E desta forma, numa vintena de páginas, Giancarlo Berardi lança as bases do que seria – do que é! – Julia, que apesar de estar em perigo (editorial) no Brasil, mesmo sendo muito louvada pela crítica - o anúncio do fim da revista levou à criação de uma série de iniciativas em sites e blogs para tentar obstar ao seu cancelamento e, já neste início de Outubro, a publicação foi distinguida com o Troféu HQMix (o mais importante do género no Brasil) como melhor Publicação de Aventura/Terror/Ficção publicada no Brasil no último ano. - mantém boa saúde em Itália onde neste mês de Outubro a edição original da Sergio Bonelli Editore atinge a edição #145, com a qual começa o seu 13º ano. Moradora de Garden City, uma cidade relativamente pacata nos arredores de uma grande metrópole, Julia divide o seu tempo entre as aulas de criminologia na universidade e as suas colaborações como consultora junto da procuradoria local. Julia, graficamente (bem) inspirada na bela e frágil Audrey Hepburn, é trintona - A par da série principal, desde 2005 é publicado em Itália (e desde 2006 no Brasil) um especial anual – “Almanacco del Giallo”/”Almanaque Mistério” – que narra as aventuras de Julia quando ainda era estudante da faculdade, com as contradições e hesitações próprias da idade mas já com todas as suas características futuras: a queda para se apaixonar pelo(s) homem(ns) errado(s); a insegurança, embora condimentada com mais ilusões e alguma impetuosidade, próprias da sua juventude; a inteligência e capacidade dedutiva que lhe garantirão o sucesso profissional futuro, embora atenuadas pela sua inexperiência. -, solteira e divide a moradia com a sua pachorrenta gata Toni. Órfã de pai e mãe, falecidos muito cedo, quando Julia tinha apenas três anos, foi educada pela avó, Lillian Osborne, para quem a actriz Jessica Tandy serviu de modelo gráfico, actualmente a viver num lar por opção própria, para dar espaço a Julia para viver a sua vida. Quase sempre fisicamente ausente, devido à exigente carreira de modelo profissional de sucesso (pesem alguns problemas relacionados com toxicodependência), Norma, a irmã mais nova de Julia, está muitas vezes no seu pensamento e é alvo de grande um cuidado protector por parte da criminologista. Durante o dia, Julia vê-se também a braços com Emily Jones (“clone” de Whopi Goldberg), uma espécie de governanta, negra, muito enérgica e opinativa, para quem dois princípios são sagrados: os brancos só servem para tramar os pretos e uma mulher – Julia em especial – só pode realizar-se se tiver um homem. Ela é a responsável pela maior parte dos momentos divertidos ou inesperados, geralmente utilizados para quebrar a tensão das narrativas. Casada e divorciada várias vezes, Emily tem vários filhos, um dos quais, Lutero (Spike Lee), é um hacker que por vezes auxilia Julia quando os meios legais não são suficientes ou suficientemente expeditos. Do ponto de vista profissional, da galeria de personagens fazem parte também o tenente da polícia Alan J. Webb (fisicamente inspirado no actor John Malkovich), que geralmente encabeça os casos que Julia acompanha e que com quem ela partilha uma relação de (quase) amor/ódio, não só pela atracção mútua que sentem mas também pela quase repulsa que as ideias opostas de um e outro provocam em ambos. Enquanto Julia é mais sensível, ponderada e liberal, Webb revela-se mais conservador, inflexível e repentista, o que frequentemente provoca acesas discussões entre os dois. Como mediador surge muitas vezes o “bom” sargento “Big” Ben Irving (cuja base foi o actor John Goodman), amante de boa comida, bonacheirão e bem-disposto, mas também competente na sua tarefa. Entre as personagens recorrentes, embora menores na sua importância, contam-se o médico-legista James Tait, o Capitão Carter, um afro-americano (inspirado em Morgan Freeman), conciso e equilibrado que surge apenas em casos de maior importância, e o Procurador Michael Robson. O lote completa-se com Leo Baxter, robusto detective particular que se assemelha a Nick Nolte, decidido e atlético, capaz de usar métodos menos ortodoxos quando necessário e amante de belas negras. E que de certa forma constitui com Julia e Webb os vértices de um inesperado triângulo amoroso, embora, pouco interessado numa relação duradoura, prefira considerar Julia mais como uma irmã do que uma mulher disponível. Situação que Julia, por vezes, parece desejar que fosse diferente. Série policial realista, esta banda desenhada não tem um “vilão de serviço” como acontece frequentemente a outros níveis. A única adversária recorrente de Julia (se assim a podemos classificar), é a serial killer lésbica Myrna Harrod, atraída e obcecada pela criminóloga, que, depois de protagonizar o tríptico inicial das aventuras de Julia, regressa uma vez por outra a Garden City para espalhar o terror e a morte, sem que até agora tenha havido o confronto decisivo. Estes são os protagonistas principais da série criada pelo italiano Giancarlo Berardi - que nasceu em Génova, na Itália, a 15 de novembro de 1949. Depois de experiências como autor e actor teatral e guitarrista da banda Gli Scorpioni, virou-se para os quadradinhos onde chegou a escrever histórias de Tarzan, Diabolik ou Mickey. Em 1974, criou Ken Parker com Ivo Milazzo, um western humanista muito saudado pela crítica e que lhe proporcionou uma legião de fãs, mesmo fora do meio habitual dos quadradinhos -, cujo primeiro número viu a luz em Itália em Outubro de 1998, como mais uma integrante do (já de si imenso) universo Bonelli. Contando já no seu currículo com uma série de peso (e de culto) como Ken Parker, Berardi não desapontou os seus muitos seguidores e fãs, impregnando de novo com uma forte componente pessoal e intimista um relato que (apenas) de forma ligeira pode ser classificado como policial. Porque, se o crime (passional, informático, político…), o roubo e/ou o assassinato estão sempre presentes, a verdade é que as histórias têm também (e sempre) uma forte componente humana. Porque Julia, geralmente, mais do que desvendar o mistério ou apanhar os criminosos, pretende compreender as suas razões e motivações. Prefere investigar a fundo o que motivou o criminoso, mais do que (ou tanto como) apanhá-lo. Como ela afirma, “Para a polícia, um assassino é somente um culpado. Já para a criminóloga, também interessa o quanto por sua vez é vítima. A violência é sempre fruto de outra violência” (“Júlia #1”, Mythos Editora, Novembro de 2004, página 94). E a forma como ela analisa cada caso, como encara cada culpado (ou inocente), muitas vezes é-nos revelada pela protagonista no seu diário, um artifício recorrente utilizado por Berardi, através do qual vamos também conhecendo os seus sentimentos, desejos, anseios e frustrações. A par disto, a heroína – que só se pode definir assim enquanto protago-nista de uma banda desenhada - vai bem para além das duas dimensões do papel em que as suas aventuras são impressas, revelando-se uma mulher com espessura, com vida própria, com vida para além da criminologia. Ou com falta dela pois, Julia revela-se tão decidida e eficaz profissionalmente, quanto insegura e temerosa no que respeita ao seu relacionamento com o outro sexo. O que não significa que relações com alguns dos homens com quem se vai cruzando não tenham lugar – e sejam muitas vezes consumadas sexualmente – embora terminem sempre ao fim de mais ou (geralmente) menos tempo, quer porque Julia receia avançar demais e perder a sua individualidade e auto-suficiência, quer porque os pontos comuns afinal não eram tantos como pareciam e Julia, embora carente, é sem dúvida exigente. Neste contexto, não surpreende que Julia se envolva algumas vezes com os próprios criminosos quer afectiva (quando entende e de certa forma subscreve as suas motivações) quer mesmo fisicamente. Ao lado de Berardi, na escrita dos guiões surgem por vezes Giuseppe De Nardo, Maurizio Montero e, principalmente, Lorenzo Calza. Este último, também músico de rap, trouxe para a série uma musicalidade – patente no ritmo das histórias em que participa e na utilização de temas musicais em diversas cenas – até aí pouco presente. Isso não retira, longe disso, a cada história tempo para respirar, para os avanços (e recuos) se fazerem ao ritmo das pausas ou da acção, tempo para os componentes da galeria de personagens ganharem consistência criarem (mais) cumplicidades com os leitores, tempo para os (novos) protagonistas em cada relato serem suficientemente desenvolvidos para ganharem credibilidade e sustentarem a(s suas) história(s). Até porque, em muitas das histórias, mesmo que por vezes o leitor já conheça mais da sua base do que os protagonistas, pois normalmente ela é narrada com o(a)(s) criminoso(a)(s) como protagonista(s) nas primeiras páginas de cada revista, há tempo para os investigadores seguirem pistas erradas ou paralelas, formularem teorias diversas, tal como, aliás, acontece com certeza na vida real. Através das suas histórias, Berardi vai traçando retratos lúcidos mas não abonatórios da sociedade actual, da decadência de instituições como a família ou a polícia, questionando métodos e objectivos, para dar sempre o primeiro lugar ao ser humano, com as suas dúvidas e contradições. A nível gráfico, como é normal nas edições Bonelli, Julia passa regularmente pelas mãos de diversos desenhadores - Laura Zuccheri é um dos nomes mais recorrentes, mas pelas suas páginas também já passaram autores como o grande Sergio Toppi (! – no nº11), Steve Boraley ou Giorgio Trevisan, entre diversos outros - , o que obviamente provoca algumas oscilações a nível de traço e acabamento (de uma qualidade média bastante interessante) - aspecto que, que infelizmente, nem sempre é possível aquilatar através das edições da Mythos, no seu habitual pequeno formato (135 x 175 mm), papel fraco e uma impressão (a preto e branco) que muitas vezes deixa a desejar no que às manchas de preto diz respeito. Este é, aliás, um dos motivos (a par da pouca divulgação por parte da editora) que muitos apontam para as fracas vendas da revista no Brasil, onde tem que fazer face a um mercado com uma enorme quantidade de oferta, geralmente com maior qualidade gráfica. A versão original italiana é maior (160 x 210 mm) e tem melhor papel e impressão. Uma nota final para referir que, contrariamente ao que é habitual nas edições Bonelli, cada número da revista conta 132 páginas e não as habituais 100 -, menos notória no que diz respeito à planificação e uso diversificado de planos e pontos de vista, pois aqui os guiões de Berardi devem ter um peso mais específico. Globalmente, pode classificar-se o desenho como realista (ou não sejam tantos os actores utilizados como modelos para os intervenientes), firme, anatomicamente correcto, bem ritmado, de planificação pelo uso e (bom) abuso de pequenos gestos, olhares e da utilização de pormenores aparentemente sem importância mas que, todos juntos, ajudam a definir o ambiente exigido e a conduzir o relato ao ritmo pretendido. Recorrentemente apontado como um dos melhores títulos disponíveis no Brasil, “J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga”, segundo as últimas informações resistirá pelo menos até à edição #79. Em Portugal, este mês de Dezembro, chegou às bancas o #68. Por isso, os leitores portugueses, poderão encontrá-lo ainda durante o próximo ano nos nossos quiosques e bancas. E acreditem que, mesmo que o aspecto da edição não seja convidativo para quem está habituado à cor e qualidade gráfica do franco-belga ou dos comics, vale a pena descobrir Julia e o universo realista que Berardi desenvolveu com mestria ao seu redor.


(Versão revista e retocada do texto publicado originalmente no BDJornal #26 de Outubro de 2010; para facilitar a leitura as notas de rodapé da versão original foram inseridas no texto, numa letra menor.)

2 comentários:

  1. Faltava-me comentar este excelente texto. Sou fã desta personagem e da BD. Esperemos que de alguma forma continue a perdurar esta pérola da BD para além dos 71. A demora constante do número a seguir só faz querer ler mais e mais as aventuras da Julia.

    Uma vez mais parabéns....

    n u n o

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  2. Olá Nuno,
    É bom encontrar mais um fã da Julia, mais a mais sendo autor de BD.
    A edição de momento está assegurada até ao #79. Depende dos leitores conseguir que vá mais longe.
    Deixo desde já um conselho, estejam atentos à excelente história dos números #69 e #70.
    Abraço!

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