26/02/2016

Cruelle






Numa época em que, doentiamente, demasiada gente trata os animais como se fossem pessoas – e muitas vezes as outras pessoas como se fossem animais – esta história sobre o fascínio que a morte dos animais exerce sobre a protagonista e a vontade de dominar a ele associada, soa como um - estranho! - oásis de normalidade.

Passe algum exagero acima, que espero tenha captado a vossa atenção, esta não é uma história para todos dada a forma crua como são mostrados alguns tratamentos a animais – e neste aspecto vejam-se algumas cenas geniais  (desculpem o termo, se puderem, após a sua leitura) e ao mesmo tempo doentiamente absurdas e de um realismo incrível, como a recepção na chegada à propriedade de Nagot, quando a caseira saúda as meninas ‘tirando o pijama’ a um coelho, o degolar da galinha ao ‘som da declamação’ das diferenças entre os vários sinais gráficos de pontuação ou o sangramento do porco sob a aura da relação ‘intensa’ com o caseiro que com ele se identifica.
Mais chocante, no entanto, neste primeiro de três volumes auto-biográficos, cuja acção se passa entre a Argentina, França e Guadalupe, e no qual acompanhamos Florence, os pais e os seus 2, 3, depois 4 irmãos ao longo de mais de uma década, é a forma doentia como a protagonista se identifica – aspira… - com aquilo que costumamos designar por leis naturais ou instinto animal, não lamentando a crueldade (do ponto de vista humano) a eles inerente, mas sim não poder imitar com as suas mãos o que os animais fazem.
Entre as fatalidades (…?) que vitimam os animais, a violência das sucessivas mudanças de cidade e país ao sabor das colocações profissionais do pai, o distanciamento deste último, a incompreensão que sente por parte da mãe, a liberdade excessiva na grande propriedade de Nagot, a ruptura com a irmã gémea na adolescência, o nascimento dos sucessivos irmãos, o jugo de uma escolaridade caseira até muito tarde e da educação católica (suficientemente) opressiva, Florence cresce e desenvolve uma série de sentimentos negativos em relação ao papel da mulher na família e na sociedade (veja-se atentamente a capa...), às limitações dos humanos em relação ao tratamento dos animais e à sociedade em geral, podendo facilmente adivinhar-se, noutro contexto, o nascimento de uma potencial psicopata, ideia reforçada pela forma como desde tenra idade aprendeu a disfarçar de forma socialmente saudável os seus sentimentos.
No entanto, talvez encaminhada pelas leituras que a animavam em pequena – surpreendentemente o puro Tintin mas também os menos socialmente integrados Schtroumpfs… - Florence tornou-se autora de BD e serve-nos um romance gráfico de mais de 200 páginas, dotado de uma planificação dinâmica, com vinhetas sem contornos que se moldam umas às outras, que se lê de um fôlego, embora no final, a par de um incontornável espanto, fique uma indeterminada sensação de incómodo, divididos entre o humor negro que pontua o seu hiper-realismo narrativo, pese o traço cartoonesco em que assenta, a um tempo simples e complexo, e a crueza desse mesmo relato.

Cruelle
Florence Dupré La Tour
Dargaud
França, 22 de Janeiro de 2016
170 x 240 mm, 208 p., cor, cartonado
EAN 9782205073348
 17.95 €

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