Numa época em que, doentiamente, demasiada gente trata os
animais como se fossem pessoas – e muitas vezes as outras pessoas como se
fossem animais – esta história sobre o fascínio que a morte dos animais exerce
sobre a protagonista e a vontade de dominar a ele associada, soa como um - estranho! - oásis
de normalidade.
Passe algum exagero acima, que espero tenha captado a vossa
atenção, esta não é uma história para todos dada a forma crua como são
mostrados alguns tratamentos a animais – e neste aspecto vejam-se algumas cenas
geniais (desculpem o termo, se puderem,
após a sua leitura) e ao mesmo tempo doentiamente absurdas e de um realismo
incrível, como a recepção na chegada à propriedade de Nagot, quando a caseira
saúda as meninas ‘tirando o pijama’ a um coelho, o degolar da galinha ao ‘som
da declamação’ das diferenças entre os vários sinais gráficos de pontuação ou o
sangramento do porco sob a aura da relação ‘intensa’ com o caseiro que com ele
se identifica.
Mais chocante, no entanto, neste primeiro de três volumes auto-biográficos,
cuja acção se passa entre a Argentina, França e Guadalupe, e no qual
acompanhamos Florence, os pais e os seus 2, 3, depois 4 irmãos ao longo de mais
de uma década, é a forma doentia como a protagonista se identifica – aspira… - com
aquilo que costumamos designar por leis naturais ou instinto animal, não
lamentando a crueldade (do ponto de vista humano) a eles inerente, mas sim não
poder imitar com as suas mãos o que os animais fazem.
Entre as fatalidades (…?) que vitimam os animais, a violência
das sucessivas mudanças de cidade e país ao sabor das colocações profissionais
do pai, o distanciamento deste último, a incompreensão que sente por parte da
mãe, a liberdade excessiva na grande propriedade de Nagot, a ruptura com a irmã
gémea na adolescência, o nascimento dos sucessivos irmãos, o jugo de uma escolaridade
caseira até muito tarde e da educação católica (suficientemente) opressiva,
Florence cresce e desenvolve uma série de sentimentos negativos em relação ao
papel da mulher na família e na sociedade (veja-se atentamente a capa...), às limitações dos humanos em relação ao tratamento
dos animais e à sociedade em geral, podendo facilmente adivinhar-se, noutro
contexto, o nascimento de uma potencial psicopata, ideia reforçada pela forma
como desde tenra idade aprendeu a disfarçar de forma socialmente saudável os
seus sentimentos.
No entanto, talvez encaminhada pelas leituras que a animavam
em pequena – surpreendentemente o puro Tintin mas também os menos socialmente
integrados Schtroumpfs… - Florence tornou-se autora de BD e serve-nos um romance
gráfico de mais de 200 páginas, dotado de uma planificação dinâmica, com
vinhetas sem contornos que se moldam umas às outras, que se lê de um fôlego,
embora no final, a par de um incontornável espanto, fique uma indeterminada
sensação de incómodo, divididos entre o humor negro que pontua o seu
hiper-realismo narrativo, pese o traço cartoonesco em que assenta, a um tempo
simples e complexo, e a crueza desse mesmo relato.
Cruelle
Florence Dupré La Tour
Dargaud
França, 22 de Janeiro de 2016
170 x 240 mm, 208 p., cor, cartonado
EAN 9782205073348
17.95 €
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