26/06/2016

Filipe Melo: “No novo livro houve um esforço para procurar um caminho próprio”









O novo livro, a sua origem e um eventual regresso às aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy são os pontos fortes desta entrevista, publicada quando Os Vampiros chega finalmente às livrarias.

As Leituras do Pedro - Há 6 anos (quando nos conhecemos) lançavas o primeiro volume do Dog Mendonça e Pizzaboy. O que mudou na tua vida desde então?
Filipe Melo - Estou mais velho. As minhas preocupações foram mudando nos últimos anos. Quando escrevi o primeiro livro, em 2004, era outra pessoa - tinha muita energia e uma dose generosa de inocência: disparava para todo o lado. Acho que o próprio livro é um reflexo disso - a história é uma tremenda confusão, mas tem muita vida e energia.
Suponho que isso foi, de alguma forma estranha, contagiante para quem a lia e o livro acabou por funcionar. No entanto, a nível pessoal, não tinha tempo nem disponibilidade para me dedicar às coisas que hoje em dia considero realmente importantes - pessoas de quem gosto, espaço para ter ideias e o tempo para trabalhar nelas.

As Leituras do Pedro - Argumentista de banda desenhada, realizador de cinema e TV, músico de jazz, participante em projectos como Deixem o pimba em paz! e Uma nêspera no cú… O que te realiza mais? Quantos Filipe Melo há? Quantas horas tem o teu dia?
Filipe Melo - Para se poder fazer só o que se gosta, é preciso trabalhar muito, e, mesmo assim, sinto que isso nem sempre acontece.
Tenho tentado, especialmente nos últimos dois ou três anos, só me envolver em projectos que me devolvam algum tipo de orgulho, e tenho tido a sorte de estar rodeado com pessoas de enorme talento e generosidade. Os projectos que referes na pergunta funcionaram por causa do grupo de pessoas que se juntou, e pelo respeito e amizade que nos une. Cada dia de trabalho é uma lição de humildade.
O meu dia tem poucas horas porque durmo muito e, infelizmente, sou só um. Gostava que tivesse mais horas e uns quantos oompa loompas, para poder levar avante algumas coisas que gostava de fazer e que procrastino constantemente. Mas suponho que é um mal muito comum. O que mais me realiza é o momento em que estou a trabalhar num projecto e a transformar ideias abstractas em algo concreto - música, filmes, BD, seja o que for. Esse processo é o que mais me apaixona e essa "zona" é onde me sinto melhor.

As Leituras do Pedro - Como nasceu Os Vampiros? Quais foram as tuas inspirações? Que percentagem de realidade e ficção há nele?
Filipe Melo - "Os Vampiros" é uma história que surgiu há uns anos, quando estava a estudar estruturas de história de um género específico, o terror.
Como sou um apaixonado por escrita de guião, e infelizmente um autodidacta, acabei por analisar alguns argumentos clássicos - Southern Comfort, The Thing, The Night of the Living Dead, Deliverance, entre outros tantos. Estava interessado em histórias que se passassem em locais claustrofóbicos. Foi aí que surgiu a primeira versão, uma tentativa de falar sobre o medo e sobre o isolamento. Foi aí que surgiu a ideia de usar a guerra colonial como um possível cenário, e depois começou o trabalho intenso de escrita.
A história ficou na gaveta muitos anos, até que o meu amigo e colega Juan Cavia sugeriu que pegasse nele outra vez. A partir daí, foi um longo processo de entrevistas e de pesquisa que fez com que uma história muito simples e linear ganhasse algum significado, por reunir tantos elementos reais. Algumas das histórias que os soldados contam no livro são transcrições exactas de relatos que ouvi em entrevistas.

As Leituras do Pedro - Como conseguiste mudar do registo humorístico e muito louco do Dog Mendonça para a abordagem séria e contida de Os Vampiros?
Filipe Melo - Foi conseguido com muito trabalho, muitas revisões, muitas dúvidas - sinto que no domínio do humor e da série B existe uma rede de segurança - se algo é mau, desculpa-se mais facilmente. Ao contrário do que se passou com a trilogia do Dog Mendonça, aqui fizemos um esforço deliberado para combater essa tendência e para nos livrarmos dessa muleta. Se nos livros anteriores assumimos todas as nossas inspirações e clichés, neste novo livro houve um esforço para procurar um caminho próprio.

As Leituras do Pedro - Esta é uma história que soa mais pessoal. Como conseguiste que o Juan Cavia embarcasse nela, a assumisse como sua?
Filipe Melo - O Juan Cavia é um artista profundamente inteligente e generoso. Já fizemos 5 livros juntos, e temos quase 600 páginas de banda desenhada em parceria. Para que tal aconteça, é preciso uma enorme confiança, respeito e amizade mútuo. O talento do Juan não se cinge ao desenho - envolve-se profundamente na narrativa e na planificação. Falamos diariamente, e creio que nada nos deu tanto trabalho na vida como Os Vampiros.
Quer se goste, quer não, posso dizer de consciência tranquila que está ali todo o nosso esforço. Num determinado momento, este livro foi a coisa mais importante da nossa vida: acreditamos que esse nível de compromisso e de obsessão acaba por compensar de alguma forma. No entanto, diria que a maior qualidade do Cavia é a dedicação cega que oferece a tudo a que se envolve. É muito difícil, ou impossível, imaginar o Juan a fazer algo menos bem por desleixo ou por falta de envolvimento.

As Leituras do Pedro - Partiste para o Dog Mendonça com uma previsão de vendas de 500 exemplares (que se transformaram em 8 mil). Que expectativas tens agora?
Filipe Melo - Se há algo que aprendi com a minha experiência na música, é a gerir expectativas. Grande parte dos concertos que fiz na vida tinham mais pessoas no palco do que no público! Lembro-me de chegar a apresentações dos livros onde não estava ninguém (mesmo!). Ver uma fila de pessoas com o nosso livro na mão vai ser sempre uma surpresa.

As Leituras do Pedro - Como têm sido as primeiras reacções ao livro?
Filipe Melo - Na véspera de entregar o livro à gráfica, tive uma longa conversa com o Juan. A nossa conclusão é que tínhamos de estar preparados para que os leitores não gostassem do resultado - esta história confia muito em quem a lê, oferece um espaço muito diferente do que os nossos trabalhos anteriores. Com isso, vem um risco gigante, torna-se uma experiência que depende mais da personalidade do leitor. Essa liberdade de interpretação foi o que mais nos entusiasmou e o que consideramos ser um passo maior para a nossa evolução. Porém... até agora as reacções foram muito boas, o que nos deixa francamente preocupados com o que aí virá.

As Leituras do Pedro - O que fazes quando te surge uma ideia mesmo boa para uma nova história do Dog Mendonça?
Filipe Melo - Tenho falado com os meus colegas Juan Cavia e Santiago Villa sobre a possibilidade de voltar ao universo do Dog Mendonça para uma última incursão. Seria um spin-off de um personagem que nos é particularmente querido. Caso aconteça, e espero que sim, será incluído n’As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy, que será o nosso último livro com essas personagens.

As Leituras do Pedro - Em termos de banda desenhada, a próxima vai ser…
Filipe Melo - Se acontecer, será uma história bem mais intimista - não será sobre a salvação do mundo ou sobre uma guerra.

(versão integral da entrevista, feita por mail, que serviu de base ao texto publicado no Jornal de Notícias de 19 de Junho de 2016; clicar nas imagens para as apreciar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. Sou admirador do Filipe Melo, para além do que é o seu trabalho na BD.

    Por uma lado, pela capacidade e qualidade do trabalho nas diferentes áreas.

    Por outro (até mais importante?), pelo trato, pela simpatia e disponibilidade.

    O Filipe Melo é um verdadeiro exemplo do Homem do Renascimento e álem disso (salvaguardado que apenas nos temos falado em festivais de BD...) parece ser, genuinamente, um tipo 5 estrelas.

    Em relação ao Vampiros, confesso que assim que cheguei do Festival de Beja o devorei sem a atenção profunda que me vou permitir (e que é necessária) numa segunda leitura.

    A verdade foi que na primeira parte do livro me senti como estando dentro do primeiro filme do "Predador", e a segunda como estando no filme "A coisa".

    Eu gosto de ambos os filmes e o que escrevo é relativamente à sensação que me transmitiu, de opressão, de medo, de estar ali alguém na selva que não vemos, mas que nos está a caçar :-)

    Para além disso há depois a interpretação da história e essa realmente tem algumas diferentes leituras...

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