O novo livro, a sua origem e um eventual regresso às aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy são os pontos fortes desta entrevista, publicada quando Os Vampiros chega finalmente às livrarias.
As Leituras do Pedro -
Há 6 anos (quando nos conhecemos) lançavas o primeiro volume do Dog Mendonça
e Pizzaboy. O que mudou na tua vida desde então?
Filipe Melo - Estou
mais velho. As minhas preocupações foram mudando nos últimos anos. Quando
escrevi o primeiro livro, em 2004, era outra pessoa - tinha muita energia e uma
dose generosa de inocência: disparava para todo o lado. Acho que o próprio
livro é um reflexo disso - a história é uma tremenda confusão, mas tem muita
vida e energia.
Suponho que isso foi, de alguma forma estranha, contagiante
para quem a lia e o livro acabou por funcionar. No entanto, a nível pessoal,
não tinha tempo nem disponibilidade para me dedicar às coisas que hoje em dia
considero realmente importantes - pessoas de quem gosto, espaço para ter ideias
e o tempo para trabalhar nelas.
As Leituras do Pedro -
Argumentista de banda desenhada, realizador de cinema e TV, músico de jazz,
participante em projectos como Deixem o pimba em paz! e Uma nêspera no cú… O
que te realiza mais? Quantos Filipe Melo há? Quantas horas tem o teu dia?
Filipe Melo - Para
se poder fazer só o que se gosta, é preciso trabalhar muito, e, mesmo assim,
sinto que isso nem sempre acontece.
Tenho tentado, especialmente nos últimos dois ou três anos,
só me envolver em projectos que me devolvam algum tipo de orgulho, e tenho tido
a sorte de estar rodeado com pessoas de enorme talento e generosidade. Os
projectos que referes na pergunta funcionaram por causa do grupo de pessoas que
se juntou, e pelo respeito e amizade que nos une. Cada dia de trabalho é uma
lição de humildade.
O meu dia tem poucas horas porque durmo muito e,
infelizmente, sou só um. Gostava que tivesse mais horas e uns quantos oompa
loompas, para poder levar avante algumas coisas que gostava de fazer e que
procrastino constantemente. Mas suponho que é um mal muito comum. O que mais me
realiza é o momento em que estou a trabalhar num projecto e a transformar
ideias abstractas em algo concreto - música, filmes, BD, seja o que for. Esse
processo é o que mais me apaixona e essa "zona" é onde me sinto
melhor.
As Leituras do Pedro -
Como nasceu Os Vampiros? Quais foram as tuas inspirações? Que percentagem de
realidade e ficção há nele?
Filipe Melo - "Os
Vampiros" é uma história que surgiu há uns anos, quando estava a estudar
estruturas de história de um género específico, o terror.
Como sou um apaixonado por escrita de guião, e infelizmente
um autodidacta, acabei por analisar alguns argumentos clássicos - Southern Comfort, The Thing, The Night of the
Living Dead, Deliverance, entre
outros tantos. Estava interessado em histórias que se passassem em locais
claustrofóbicos. Foi aí que surgiu a primeira versão, uma tentativa de falar
sobre o medo e sobre o isolamento. Foi aí que surgiu a ideia de usar a guerra
colonial como um possível cenário, e depois começou o trabalho intenso de
escrita.
A história ficou na gaveta muitos anos, até que o meu amigo
e colega Juan Cavia sugeriu que pegasse nele outra vez. A partir daí, foi um longo
processo de entrevistas e de pesquisa que fez com que uma história muito
simples e linear ganhasse algum significado, por reunir tantos elementos reais.
Algumas das histórias que os soldados contam no livro são transcrições exactas
de relatos que ouvi em entrevistas.
As Leituras do Pedro -
Como conseguiste mudar do registo humorístico e muito louco do Dog Mendonça
para a abordagem séria e contida de Os Vampiros?
Filipe Melo - Foi
conseguido com muito trabalho, muitas revisões, muitas dúvidas - sinto que no
domínio do humor e da série B existe uma rede de segurança - se algo é mau,
desculpa-se mais facilmente. Ao contrário do que se passou com a trilogia do Dog Mendonça, aqui fizemos um esforço
deliberado para combater essa tendência e para nos livrarmos dessa muleta. Se
nos livros anteriores assumimos todas as nossas inspirações e clichés, neste
novo livro houve um esforço para procurar um caminho próprio.
As Leituras do Pedro -
Esta é uma história que soa mais pessoal. Como conseguiste que o Juan Cavia
embarcasse nela, a assumisse como sua?
Filipe Melo - O
Juan Cavia é um artista profundamente inteligente e generoso. Já fizemos 5
livros juntos, e temos quase 600 páginas de banda desenhada em parceria. Para
que tal aconteça, é preciso uma enorme confiança, respeito e amizade mútuo. O
talento do Juan não se cinge ao desenho - envolve-se profundamente na narrativa
e na planificação. Falamos diariamente, e creio que nada nos deu tanto trabalho
na vida como Os Vampiros.
Quer se goste, quer não, posso dizer de consciência
tranquila que está ali todo o nosso esforço. Num determinado momento, este
livro foi a coisa mais importante da nossa vida: acreditamos que esse nível de
compromisso e de obsessão acaba por compensar de alguma forma. No entanto,
diria que a maior qualidade do Cavia é a dedicação cega que oferece a tudo a
que se envolve. É muito difícil, ou impossível, imaginar o Juan a fazer algo
menos bem por desleixo ou por falta de envolvimento.
As Leituras do Pedro -
Partiste para o Dog Mendonça com uma previsão de vendas de 500 exemplares (que
se transformaram em 8 mil). Que expectativas tens agora?
Filipe Melo - Se
há algo que aprendi com a minha experiência na música, é a gerir expectativas.
Grande parte dos concertos que fiz na vida tinham mais pessoas no palco do que
no público! Lembro-me de chegar a apresentações dos livros onde não estava ninguém
(mesmo!). Ver uma fila de pessoas com o nosso livro na mão vai ser sempre uma
surpresa.
As Leituras do Pedro -
Como têm sido as primeiras reacções ao livro?
Filipe Melo - Na
véspera de entregar o livro à gráfica, tive uma longa conversa com o Juan. A
nossa conclusão é que tínhamos de estar preparados para que os leitores não
gostassem do resultado - esta história confia muito em quem a lê, oferece um
espaço muito diferente do que os nossos trabalhos anteriores. Com isso, vem um
risco gigante, torna-se uma experiência que depende mais da personalidade do
leitor. Essa liberdade de interpretação foi o que mais nos entusiasmou e o que
consideramos ser um passo maior para a nossa evolução. Porém... até agora as
reacções foram muito boas, o que nos deixa francamente preocupados com o que aí
virá.
As Leituras do Pedro -
O que fazes quando te surge uma ideia mesmo boa para uma nova história do Dog
Mendonça?
Filipe Melo - Tenho
falado com os meus colegas Juan Cavia e Santiago Villa sobre a possibilidade de
voltar ao universo do Dog Mendonça para uma última incursão. Seria um spin-off
de um personagem que nos é particularmente querido. Caso aconteça, e espero que
sim, será incluído n’As Aventuras
Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy, que será o nosso último livro com
essas personagens.
As Leituras do Pedro -
Em termos de banda desenhada, a próxima vai ser…
Filipe Melo - Se
acontecer, será uma história bem mais intimista - não será sobre a salvação do
mundo ou sobre uma guerra.
(versão integral da entrevista, feita por mail, que serviu
de base ao texto publicado no Jornal de Notícias de 19 de Junho de 2016; clicar nas imagens para as apreciar em toda a sua extensão)
Sou admirador do Filipe Melo, para além do que é o seu trabalho na BD.
ResponderEliminarPor uma lado, pela capacidade e qualidade do trabalho nas diferentes áreas.
Por outro (até mais importante?), pelo trato, pela simpatia e disponibilidade.
O Filipe Melo é um verdadeiro exemplo do Homem do Renascimento e álem disso (salvaguardado que apenas nos temos falado em festivais de BD...) parece ser, genuinamente, um tipo 5 estrelas.
Em relação ao Vampiros, confesso que assim que cheguei do Festival de Beja o devorei sem a atenção profunda que me vou permitir (e que é necessária) numa segunda leitura.
A verdade foi que na primeira parte do livro me senti como estando dentro do primeiro filme do "Predador", e a segunda como estando no filme "A coisa".
Eu gosto de ambos os filmes e o que escrevo é relativamente à sensação que me transmitiu, de opressão, de medo, de estar ali alguém na selva que não vemos, mas que nos está a caçar :-)
Para além disso há depois a interpretação da história e essa realmente tem algumas diferentes leituras...