Há 60 anos, Beetle Bailey, eterno recruta, estreava-se numa dúzia de jornais mas o seu criador estava longe de imaginar o seu sucesso e de como este dependeria da sua estreita relação com o exército norte-americano.
Símbolo por excelência da preguiça – “não faças amanhã, o que podes deixar para depois de amanhã”, poderia ser o seu lema tal como “se sentires vontade de trabalhar, deita-te e espera que passe” – e de uma contestação suave e desarmante ao autoritarismo da instituição militar, Bailey (em Portugal mais conhecido como Recruta Zero) sobrevive até hoje, sendo publicado diariamente em centenas de jornais por todo o mundo.
Para o seu progenitor, Mort Walker, nascido a 3 de Setembro de 1923, em El Dorado, no Kansas, desenhar cartoons sempre foi algo tão natural como comer ou beber. Por isso publicou o primeiro desenho no jornal escolar aos 10 anos, vendeu o primeiro cartoon aos 11, criou a primeira série regular – “Limejuicers” – aos 13, tornou-se cartoonista profissional aos 15, dirigiu a primeira revista aos 18 (e criou durante a sua carreira outras séries famosas, como “Hi & Lois”, “Boner’s Ark” ou “Betty Boop and Felix”). Em 1948, após cumprir o serviço militar na II Guerra Mundial (“quatro anos de pesquisa”, dizia ele) e terminar a sua formação universitária, mudou-se para Nova Iorque, onde viu recusados cerca de 200 cartoons, antes de conseguir emprego como editor de quatro títulos na Dell Publishing Company.
Em 1950, cansado do excesso de trabalho e do baixo salário decidiu reciclar Spider, um jovem desengonçado e desleixado, com olhos pequenos e que fumava cachimbo, que era personagem recorrente dos seus gags, tornando-o protagonista de uma tira diária, em meio universitário, entre colegas, miúdas e professores. A King Features aprovou o projecto, embora mudando o título para Beetle Bailey.
A estreia da tira diária foi modesta, apenas numa dúzia de jornais, que tinham aumentado para o dobro ao fim de seis meses, número insuficiente para justificar a sua manutenção, ao fim de um ano de existência, não tivesse a realidade influenciado a ficção. É que a 25 de Junho desse ano, tinha-se iniciado a Guerra da Coreia, o que veio a introduzir um ponto de viragem na vida de Bailey que a 13 de Março de 1951 se alistou para servir no exército norte-americano, vivendo nos quadradinhos da tira de jornal o que experimentavam os seus pares do mundo real.
Destacado para o Camp Swampy (pantanoso), o novo recruta, de quem os quadradinhos nunca mostraram os olhos, sempre sob um chapéu ou boné, viu recrudescer a sua preguiça e demonstrou a maior inépcia para a vida militar, originando as maiores confusões e tornando-se no alvo preferencial do colérico (mas sentimental) Sargento Orville Snorkel. Da sua vida anterior, levou apenas a namorada, destacando-se na nova galeria persona-gens como “Killer” Diller, um mulhe-rengo, Otto, o cão antropo-mórfico de Snorkell, ou o General Amos Halftrack, caquéctico, alcoólico mais interessado no golfe e na (bela) secretária do que nas suas atribuições.
Com eles, demonstrando um enorme sentido de humor, especial predilecção por gags puramente visuais e uma invulgar capacidade de (re)inventar situações, pondo constantemente em causa a autoridade militar, Walker transformou Beetle Bailey num grande sucesso, difundido por centenas de jornais, entre os quais o próprio “Star & Strips”, órgão oficial do exército.
Com o final da guerra, uma tentativa de regresso à vida civil do recruta foi imediatamente rejeitada, provocando inclusive centenas de cartas de protesto por parte dos leitores e condenando Bailey, que também já protagonizava uma prancha dominical colorida desde 14 de Setembro de 1952, a uma eterna vida militar, se é que assim se pode designar o seu desempenho, para gáudio dos seus leitores, que se foram renovando ao longo dos anos.
Com a vida no exército como tema, Beetle Bailey foi sempre uma fonte de polémica. A primeira, significativa, surgiu no final da guerra da Coreia, quando o novo responsável do “Star & Strips”decidiu suspender a sua publicação, considerando-a atentatória da moral (?!) e má para a disciplina do exército, o que incendiou a imprensa em defesa da série.
Quase 20 anos depois, em 1970, a situação repetiu-se quando Walker, apesar da oposição da distribuidora, introduziu um oficial negro, o tenente Flap, sendo acusado pelos negros de os estereotipar e pelos brancos de proselitismo, numa época em que o racismo era uma realidade nos EUA.
Em 1997, as atenções constantes do general Halftrack em relação à sua sedutora secretária, a bela Miss Sheila Buxley, criada em 1982, levaram os movimentos feministas a acusar o autor de promover o assédio sexual.
Em todos estes momentos, após pousar a poeira das críticas, a série saiu sempre reforçada junto do público e incrementou a sua difusão nos jornais.
E a verdade é que o próprio Exército dos EUA, apesar de tudo, se mostrou grato pela sua criação, atribuindo a Mort Walker no ano 2000 a mais alta condecoração com que é possível distinguir um civil.
O sucesso da tira (que em Portugal passou pelo jornal A Capital nos anos 70, bem como por diversas revistas, para além das versões brasileiras que chegavam aos nossos quiosques) originou duas adaptações animadas na televisão, em 1963 e em 1994, inúmeras publicações em revistas e livros, uma homenagem em forma de selo pelos correios norte-americanos, já este ano (o que foi referenciado na própria tira), e rendeu inúmeros prémios a Mort Walker, que desde os anos 80 foi assistido pelo seu filho Greg, actualmente responsável pela série.
(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 4 de Setembro de 2010)
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