Reconheço a importância histórica e a qualidade – ambas a
diferentes níveis – de V de Vingança, A Garagem Hermética, Fax de Saravejo ou Valentina. Considero Presas Fáceis um dos grandes
lançamentos do ano em Portugal e gostei bastante de A História de um Rato Mau. Aconselho
vivamente O Inverno do Desenhador e espero
muito de A Asa Quebrada.
Mas, para mim, o melhor livro desta segunda
colecção Novela Gráfica é este: Daytripper.
Deixo a seguir introdução que tive o privilégio de escrever
para ele.
A vida (e a morte) em
forma de arte
“O poder da ficção não
está em criar o impossível, mas em tornar o possível, o real, tão interessante
quanto o imaginário.”
Fábio Moon in 10 Pãezinhos - Fanzine
Hesitei longamente sobre o título a dar a esta introdução,
mas finalmente prevaleceu o que está acima.
As outras duas hipóteses - durante bastante tempo as únicas -
eram “Paixão pelos quadr(ad)inhos” e “Dois irmãos”.
A segunda é fácil de justificar: os autores deste livro,
Fábio Moon e Gabriel Bá, são irmãos, gémeos, brasileiros, nascidos em São Paulo,
em 1976.
E são dois irmãos apaixonados por banda desenhada - melhor,
enamorados porque paixão pressupõe um sentimento explosivo mas passageiro,
enquanto o enamoramento implica dedicação constante ao objecto da afeição e até
o passo em frente para uma relação mais séria.
Desde sempre souberam que iam ser autores o que, sendo
evidente hoje e pelo seu percurso, já estava claramente afirmado na sua “tese
de compromisso”, o livro “10 Pãezinhos[i]
- Fanzine”, que é uma tocante declaração de amor e de entrega à arte de narrar
em imagens sequenciais e no qual evocam o seu percurso iniciático de
aprendizagem e crescimento, de fãs e autores de fanzines até estarem prontos para
o passo seguinte, a profissionalização.
Que, sem renegarem outros projectos - como a adaptação (personalizada)
de clássicos da literatura brasileira como O Alienista, de Machado de Assis,
ou (justificadamente) Dois irmãos, de Milton Hatoum – ou a formação superior
em Artes Plásticas como mais um instrumento para o seu objectivo, já os levou a
trabalhar com autores como Mike Mignola (B.P.R.D.: Vampire), Matt Fraction
(Casanova), Gerald Way (Umbrella Academy) ou, mais recentemente, Neil
Gaiman (How to Talk to Girls at Parties).
Daytripper, que agora têm nas mãos, é um elemento
fundamental nesse percurso porque, incontornavelmente, marca a afirmação da
dupla - Bá e Moon escrevem e desenham (muitas vezes) juntos - como autores
completos e a solo (duplo).
Editado primeiro nos Estados Unidos, em dez comic-books, ao
longo de 2010, e só depois no Brasil, permitiu a sua afirmação internacional e,
principalmente - atrevo-me a escrever - o seu reconhecimento no país natal - cá
como lá, o que vem do estrangeiro é sempre melhor…?
Daytripper, narra a vida de Brás de Oliva Domingues,
escritor de (poderosos) obituários - porque “a morte
é uma parte da vida” e “as pessoas morrem todos os dias” - e
romancista de sucesso, e as suas sucessivas mortes - ou regressos à vida? - num
ciclo contínuo de renovação, de sonhos e da sua concretização, de entrega e de vontade
de viver.
É uma história sobre a vida, sobre vidas, sobre como viver,
sobre escolhas de vida, sobre como as escolhas moldam, mudam, condicionam a
vida.
Uma história - ou muitas histórias, uma por cada capítulo…? -
em que Bá e Moon não se limitam a colocar a vida em palavras. A textos já de si
poderosos, apesar de contidos e assertivos, juntam-lhes imagens que dão corpo,
forma e existência (mais) real a Brás, ao seu pai, a Jorge, Ana e às restante
personagens com quem nos vamos cruzar e que, de certeza, não vamos esquecer.
Porque se “há muitas
coisas na vida difíceis de perceber, e o desafio de as colocar em palavras [e
em imagens] é ainda maior”, Bá e Moon
fazem da sua ficção (quase) um relato autobiográfico pela forma como narram,
transmitindo a sensação de que o que é contado foi - foi? - realmente vivido e
que, depois de se (re)contarem nos trabalhos iniciais – narrando a(s suas)
existência(s) em forma de arte - e fica aqui a justificação do título -, apesar
das suas vidas estarem longe de esgotadas, decidiram contar outras. Inventando
as vidas daqueles com quem se foram cruzando ou as vidas cruzadas que foram
inventando…
Só consegue escrever assim quem experimentou ou viveu - ou
tem um imenso talento. No caso de Bá e Moon, se acredito que viveram - mesmo
que de outra forma - parte - muito? - do que escreveram e desenharam, não tenho
qualquer dúvida que o ‘muito talento’ também é uma realidade.
Nas suas histórias - como na vida - cada nova experiência -
aquelas experiências que valem a pena, marcam, fazem a diferença e ficam
connosco para sempre. Ao fazer-nos avançar, matam-nos também um pouco. Matam o
que fomos, fazem-nos um outro alguém. A necessidade de evolução que provocam,
as mudanças a que, mesmo contra a nossa vontade, obrigam, mudam-nos
inevitavelmente. Saímos delas diferentes, mais fortes - mesmo que não o
saibamos.
Não para olhar para trás, não para evocar o vivido porque,
após cada momento, tal como no final desta leitura, ecoa e persiste o conselho
de Brás de Oliva Domingos: “respire fundo, feche o livro e abra os olhos: há
uma vida à sua espera para ser vivida”.
[i] 10 Pãezinhos foi o título
do fanzine que Moon e Bá escreveram, desenharam e editaram – durante algum
tempo semanalmente, num compromisso consigo e com os leitores – entre 1997 e
2001, no qual experimentaram, arriscaram, falharam, voltaram atrás, testaram
formas, modelos, estilos, temáticas, procuraram o(s) seu(s) caminho(s) e o seu
público. É também o título do seu blog (http://10paezinhos.blog.uol.com.br/)
e uma evocação dos 10 pãezinhos que, diariamente, em crianças, iam buscar à
padaria para o pequeno-almoço e “representavam nosso acordar, nossa casa, eram
o nosso todo o dia”.
Colecção Novela Gráfica
Gabriel Bá e Fabio Moon
Levoir/Público
Portugal, 18 de Agosto de 2016
256 p., cor, capa dura
9,90 €
(imagens disponibilizadas pela editora; clicar sobre elas
para as aproveitar em toda a sua extensão)
Um excelente livro sem duvida, E correndo o risco de parecer um papagaio, tenho de concordar com o que dizes logo no inicio. Livros diferentes e com objectivos certamente diferentes também, e em que a qualidade de cada um deles nunca esteve nem está em causa, mas ainda assim este é, até agora, aquele que mais me cativou neste segunda leva da Colecção Novela Gráfica.
ResponderEliminarBoas leituras
Acabo de ler esta magnifica obra que arrisca-se a ser considerada a melhor desta excelente coleção Novela Gráfica II. Alias a fasquia já estava alta depois de ler a critica do magnifico autor deste blog que nos brinda com uma excelente introdução.Uma pequena obra de arte, um retrato que levanta mais perguntas que resposta, uma reflexão sobre a morte, os sonhos não realizados, os momentos que realmente importam. Acreditem, este livro, vale cada cêntimo.
ResponderEliminarMarco, Pedro,
ResponderEliminarEstamos de acordo quanto à excelência de Daytripper!
Boas leituras!