23/08/2016

Daytripper



Reconheço a importância histórica e a qualidade – ambas a diferentes níveis – de V de Vingança, A Garagem Hermética, Fax de Saravejo ou Valentina. Considero Presas Fáceis um dos grandes lançamentos do ano em Portugal e gostei bastante de A História de um Rato Mau. Aconselho vivamente O Inverno do Desenhador e espero muito de A Asa Quebrada.
Mas, para mim, o melhor livro desta segunda colecção Novela Gráfica é este: Daytripper.
Deixo a seguir introdução que tive o privilégio de escrever para ele.

A vida (e a morte) em forma de arte
“O poder da ficção não está em criar o impossível, mas em tornar o possível, o real, tão interessante quanto o imaginário.”
Fábio Moon in 10 Pãezinhos - Fanzine

Hesitei longamente sobre o título a dar a esta introdução, mas finalmente prevaleceu o que está acima.
As outras duas hipóteses - durante bastante tempo as únicas - eram “Paixão pelos quadr(ad)inhos” e “Dois irmãos”.
A segunda é fácil de justificar: os autores deste livro, Fábio Moon e Gabriel Bá, são irmãos, gémeos, brasileiros, nascidos em São Paulo, em 1976.
E são dois irmãos apaixonados por banda desenhada - melhor, enamorados porque paixão pressupõe um sentimento explosivo mas passageiro, enquanto o enamoramento implica dedicação constante ao objecto da afeição e até o passo em frente para uma relação mais séria.
Desde sempre souberam que iam ser autores o que, sendo evidente hoje e pelo seu percurso, já estava claramente afirmado na sua “tese de compromisso”, o livro “10 Pãezinhos[i] - Fanzine”, que é uma tocante declaração de amor e de entrega à arte de narrar em imagens sequenciais e no qual evocam o seu percurso iniciático de aprendizagem e crescimento, de fãs e autores de fanzines até estarem prontos para o passo seguinte, a profissionalização.
Que, sem renegarem outros projectos - como a adaptação (personalizada) de clássicos da literatura brasileira como O Alienista, de Machado de Assis, ou (justificadamente) Dois irmãos, de Milton Hatoum – ou a formação superior em Artes Plásticas como mais um instrumento para o seu objectivo, já os levou a trabalhar com autores como Mike Mignola (B.P.R.D.: Vampire), Matt Fraction (Casanova), Gerald Way (Umbrella Academy) ou, mais recentemente, Neil Gaiman (How to Talk to Girls at Parties).

Daytripper, que agora têm nas mãos, é um elemento fundamental nesse percurso porque, incontornavelmente, marca a afirmação da dupla - Bá e Moon escrevem e desenham (muitas vezes) juntos - como autores completos e a solo (duplo).
Editado primeiro nos Estados Unidos, em dez comic-books, ao longo de 2010, e só depois no Brasil, permitiu a sua afirmação internacional e, principalmente - atrevo-me a escrever - o seu reconhecimento no país natal - cá como lá, o que vem do estrangeiro é sempre melhor…?
Daytripper, narra a vida de Brás de Oliva Domingues, escritor de (poderosos) obituários - porque “a morte é uma parte da vida” e “as pessoas morrem todos os dias” - e romancista de sucesso, e as suas sucessivas mortes - ou regressos à vida? - num ciclo contínuo de renovação, de sonhos e da sua concretização, de entrega e de vontade de viver.
É uma história sobre a vida, sobre vidas, sobre como viver, sobre escolhas de vida, sobre como as escolhas moldam, mudam, condicionam a vida.
Uma história - ou muitas histórias, uma por cada capítulo…? - em que Bá e Moon não se limitam a colocar a vida em palavras. A textos já de si poderosos, apesar de contidos e assertivos, juntam-lhes imagens que dão corpo, forma e existência (mais) real a Brás, ao seu pai, a Jorge, Ana e às restante personagens com quem nos vamos cruzar e que, de certeza, não vamos esquecer.
Porque se “há muitas coisas na vida difíceis de perceber, e o desafio de as colocar em palavras [e em imagens] é ainda maior”, Bá e Moon fazem da sua ficção (quase) um relato autobiográfico pela forma como narram, transmitindo a sensação de que o que é contado foi - foi? - realmente vivido e que, depois de se (re)contarem nos trabalhos iniciais – narrando a(s suas) existência(s) em forma de arte - e fica aqui a justificação do título -, apesar das suas vidas estarem longe de esgotadas, decidiram contar outras. Inventando as vidas daqueles com quem se foram cruzando ou as vidas cruzadas que foram inventando…
Só consegue escrever assim quem experimentou ou viveu - ou tem um imenso talento. No caso de Bá e Moon, se acredito que viveram - mesmo que de outra forma - parte - muito? - do que escreveram e desenharam, não tenho qualquer dúvida que o ‘muito talento’ também é uma realidade.
Nas suas histórias - como na vida - cada nova experiência - aquelas experiências que valem a pena, marcam, fazem a diferença e ficam connosco para sempre. Ao fazer-nos avançar, matam-nos também um pouco. Matam o que fomos, fazem-nos um outro alguém. A necessidade de evolução que provocam, as mudanças a que, mesmo contra a nossa vontade, obrigam, mudam-nos inevitavelmente. Saímos delas diferentes, mais fortes - mesmo que não o saibamos.
Não para olhar para trás, não para evocar o vivido porque, após cada momento, tal como no final desta leitura, ecoa e persiste o conselho de Brás de Oliva Domingos: “respire fundo, feche o livro e abra os olhos: há uma vida à sua espera para ser vivida”.



[i] 10 Pãezinhos foi o título do fanzine que Moon e Bá escreveram, desenharam e editaram – durante algum tempo semanalmente, num compromisso consigo e com os leitores – entre 1997 e 2001, no qual experimentaram, arriscaram, falharam, voltaram atrás, testaram formas, modelos, estilos, temáticas, procuraram o(s) seu(s) caminho(s) e o seu público. É também o título do seu blog (http://10paezinhos.blog.uol.com.br/) e uma evocação dos 10 pãezinhos que, diariamente, em crianças, iam buscar à padaria para o pequeno-almoço e “representavam nosso acordar, nossa casa, eram o nosso todo o dia”.

Daytripper
Colecção Novela Gráfica
Gabriel Bá e Fabio Moon
Levoir/Público
Portugal, 18 de Agosto de 2016
256 p., cor, capa dura
9,90 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar sobre elas para as aproveitar em toda a sua extensão)

3 comentários:

  1. Um excelente livro sem duvida, E correndo o risco de parecer um papagaio, tenho de concordar com o que dizes logo no inicio. Livros diferentes e com objectivos certamente diferentes também, e em que a qualidade de cada um deles nunca esteve nem está em causa, mas ainda assim este é, até agora, aquele que mais me cativou neste segunda leva da Colecção Novela Gráfica.

    Boas leituras

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  2. Pedro Ferreira18/9/16 21:12

    Acabo de ler esta magnifica obra que arrisca-se a ser considerada a melhor desta excelente coleção Novela Gráfica II. Alias a fasquia já estava alta depois de ler a critica do magnifico autor deste blog que nos brinda com uma excelente introdução.Uma pequena obra de arte, um retrato que levanta mais perguntas que resposta, uma reflexão sobre a morte, os sonhos não realizados, os momentos que realmente importam. Acreditem, este livro, vale cada cêntimo.

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  3. Marco, Pedro,
    Estamos de acordo quanto à excelência de Daytripper!
    Boas leituras!

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