02/07/2018

Calipso


Sem medo de arriscar

O autor deste volume, Bernard Cosendai, conhecido no meio da banda desenhada pelo pseudónimo de Cosey, nasceu em Lausanne, na Suíça, a 14 de Junho de 1950. Com uma infância e adolescência sem história, entrou no mundo da ilustração aos 16 anos, fazendo a sua aprendizagem no seio de uma agência publicitária. No entanto, o apelo da BD foi mais forte e, cinco anos mais tarde, depois de ter conhecido o seu conterrâneo Derib (autor de Buddy Longway), já fazia a sua estreia aos quadradinhos.
Após trabalhar com diversos argumentistas, entre os quais André-Paul Duchateau (autor de Ric Hochet), em 1974 chegava a altura de avançar a solo, com Jonathan. Sem medo de arriscar, para além de se assumir como autor completo, atrevia-se a propor à revista Tintin belga um protagonista que era tudo o que os heróis dela não eram. Onde até aí imperava a aventura, Cosey propunha lições de vida. Onde os heróis eram infalíveis e invencíveis, Jonathan duvidava, hesitava, perdia às vezes no grande jogo da vida. Numa altura em que imperavam o ruído dos tiros, o som dos motores nas corridas, o chiar dos pneus nas perseguições, os sons mais inusitados das mais surpreendentes partidas, Jonathan, nas suas deambulações pelos Himalaias, era calma, silêncio, contemplação.

Encontrado o caminho, trilhado calmamente, dez anos depois Cosey voltava a não ter medo de arriscar. Num meio em que a BD se fazia quase sempre em séries com heróis fixos recorrentes, em álbuns de 48 páginas, Em Busca de Peter Pan, já proposto pela Levoir na sua colecção Novela Gráfica de 2015, mesmo que dividido originalmente em dois volumes, apresentava-se como obra completa e fechada, com protagonistas de uma única história, um romance gráfico num tempo em que o conceito mal existia.O tempo passou, e Cosey prosseguiu, dividido entre um Jonathan cada vez mais introspectivo e as personagens humanas e sensíveis de sucessivos romances gráficos, num percurso com nada de linear, que o trouxe até aos nossos dias.
Antes deste Calipso - já lá vou! - mais uma vez sem medo de arriscar, aceitou o desafio de recriar Mickey Mouse, mas sendo fiel ao seu registo gráfico e aos seus ambientes. Aconteceu em Une Mystérieuse Mélodie ou comment Mickey rencontra Minnie (2016), que narra o primeiro encontro entre Mickey e Minnie, recheado de referências à ingenuidade, ao humor, à aventura e à musicalidade dos filmes Disney dos primórdios.

De seguida, em 2017, no ano em que o Festival de BD de Angoulême lhe concedeu o seu Grande Prémio pelo conjunto da sua obra, prosseguindo sem medo de arriscar, Cosey propôs este Calipso, um novo romance gráfico, que desde logo se distingue por ter sido integralmente concebido a preto e branco. Cosey cumpria assim “um velho sonho”, ao mesmo tempo que proporcionava a si próprio “uma forma de se surpreender”. Mais, neste regresso à sua Suíça natal, a locais indefinidos, mas inspirados nas proximidades da sua residência, a mesma Suíça em que já tinham evoluído o Vlatko e a Evolena de Em Busca de Peter Pan, o autor confessa a sua admiração pelas gravuras em madeira de Félix Valloton, o que o levou “a trabalhar o branco e o preto como duas cores, sem ter em conta as sombras nem a iluminação”.

O resultado, são pranchas surpreendentes, díspares do que lhe conhecíamos até agora, altamente contrastadas entre a intensidade do branco e o negrume do preto, sem meios termos. E nas quais, de forma que se revela como natural no domínio narrativo, mas que em termos estéticos surpreende, Cosey consegue passar de um acentuado realismo para sequências puramente visuais e pictóricas.
Porque é nessa ambivalência - entre a realidade e o sonho - que respira, vive e se faz Calipso. Uma ambivalência que se desenrola entre os desejos perseguidos - e cumpridos - e aqueles que apenas se sonharam.

Por isso, a narrativa podia ter como subtítulo “uma história de três idosos de regresso à adolescência” - Georgia, Gus e Pepe.Georgia (antes Georgette) é uma antiga estrela de Hollywood, vedeta marcante de um único filme - que dá nome ao livro - em que cumpriu os sonhos de fama e grandeza que, à saída da adolescência, a levaram a abandonar tudo e todos e a cruzar o oceano - e no qual o seu papel de sereia fez sonhar os homens que a viram nadar.Entre eles estava Gus - o seu primeiro e grande amor - que, abandonado, conformado com a perda, mas sempre impulsivo, (re)fez - por vezes tumultuosamente - a vida (banal), na mesma localidade. Entre os seus amigos, encontra-se Pepe, um espanhol com o sonho de abrir um pequeno restaurante de fondues, que o destino - ou algo mais? - levou até à Suíça.

O regresso de Georgia à sua região natal, para (mais) uma desintoxicação, vai proporcionar o reencontro emotivo dos dois antigos amantes, mas também reabrir algumas feridas mal cicatrizadas, que Pepe, à sua maneira, tentará minimizar. Se Cosey podia ter ficado pela exploração das relações - área em que se tem revelado mestre, e que mesmo assim é fundamental no desenrolar do relato - preferiu optar por surpreender o leitor e introduzir uma derivação narrativa quase surreal. Na sua origem, está a descoberta de uma situação anómala com a gestão das finanças de Georgia, e o arquitectar de um plano tresloucado - tipicamente adolescente, apetece escrever... - que passa por um rapto e um pedido de resgate.

Ou, olhando de outro modo, pelo regresso ao sonho e ao trilhar de caminhos para o perseguir, com o trio a reencontrar a loucura, o entusiasmo, a ausência de medo e o desprezo pelas consequências, tão típicos da adolescência.Se este é apenas o ponto de partida, o final de tons delicodoces, também habituais em Cosey, está igualmente presente em Calipso mas, até lá chegar, o leitor avançará de surpresa em surpresa, com muita água dos rios a correr para o mar, onde muitas sereias poderão ser avistadas…

Calipso
Cosey
Levoir/Público
Portugal, 27 de Junho de 2018
240 x 290 mm, 120 p., pb, capa dura
10,90 €

(este texto é a introdução do livro na colecção Novela Gráfica; imagens cedidas pela editora; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Pedro Ferreira2/7/18 20:59

    Uma história bem conseguida conduzida por um dos maiores nomes desta arte que é a nona.

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    1. Acho que o Cosey já fez melhor...
      Boas leituras!

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