Sem
medo de arriscar
O
autor deste volume, Bernard Cosendai, conhecido no meio da banda
desenhada pelo pseudónimo de Cosey, nasceu em Lausanne, na Suíça,
a 14 de Junho de 1950. Com uma infância e adolescência sem
história, entrou no mundo da ilustração aos 16 anos, fazendo a sua
aprendizagem no seio de uma agência publicitária. No entanto, o
apelo da BD foi mais forte e, cinco anos mais tarde, depois de ter
conhecido o seu conterrâneo Derib (autor de Buddy
Longway),
já fazia a sua estreia aos quadradinhos.
Após
trabalhar com diversos argumentistas, entre os quais André-Paul
Duchateau (autor de Ric
Hochet),
em 1974 chegava a altura de avançar a solo, com Jonathan.
Sem medo de arriscar, para além de se assumir como autor completo,
atrevia-se a propor à revista Tintin
belga um protagonista que era tudo o que os heróis dela não eram.
Onde até aí imperava a aventura, Cosey propunha lições de vida.
Onde os heróis eram infalíveis e invencíveis, Jonathan duvidava,
hesitava, perdia às vezes no grande jogo da vida. Numa altura em que
imperavam o ruído dos tiros, o som dos motores nas corridas, o chiar
dos pneus nas perseguições, os sons mais inusitados das mais
surpreendentes partidas, Jonathan, nas suas deambulações pelos
Himalaias, era calma, silêncio, contemplação.
Encontrado
o caminho, trilhado calmamente, dez anos depois Cosey voltava a não
ter medo de arriscar. Num meio em que a BD se fazia quase sempre em
séries com heróis fixos recorrentes, em álbuns de 48 páginas, Em
Busca de Peter Pan,
já proposto pela Levoir na sua colecção Novela Gráfica de 2015,
mesmo que dividido originalmente em dois volumes, apresentava-se como
obra completa e fechada, com protagonistas de uma única história,
um romance gráfico num tempo em que o conceito mal existia.O tempo
passou, e Cosey prosseguiu, dividido entre um Jonathan
cada vez mais introspectivo e as personagens humanas e sensíveis de
sucessivos romances gráficos, num percurso com nada de linear, que o
trouxe até aos nossos dias.
Antes
deste Calipso - já lá vou! - mais uma vez sem medo de arriscar,
aceitou o desafio de recriar Mickey Mouse, mas sendo fiel ao seu
registo gráfico e aos
seus ambientes. Aconteceu em Une
Mystérieuse Mélodie ou comment Mickey rencontra Minnie
(2016), que narra o primeiro encontro entre Mickey e Minnie, recheado
de referências à ingenuidade, ao humor, à aventura e à
musicalidade dos filmes Disney dos primórdios.
De
seguida, em 2017, no ano em que o Festival de BD de Angoulême lhe
concedeu o seu Grande Prémio pelo conjunto da sua obra, prosseguindo
sem medo de arriscar, Cosey propôs este Calipso,
um novo romance gráfico, que desde logo se distingue por ter sido
integralmente concebido a preto e branco. Cosey cumpria assim “um
velho sonho”, ao mesmo tempo que proporcionava a si próprio “uma
forma de se surpreender”. Mais, neste regresso à sua Suíça
natal, a locais indefinidos, mas inspirados nas proximidades da sua
residência, a mesma Suíça em que já tinham evoluído o Vlatko e a
Evolena de Em
Busca de Peter Pan,
o autor confessa a sua admiração pelas gravuras em madeira de Félix
Valloton, o que o levou “a trabalhar o branco e o preto como duas
cores, sem ter em conta as sombras nem a iluminação”.
O
resultado, são pranchas surpreendentes, díspares do que lhe
conhecíamos até agora, altamente contrastadas entre a intensidade
do branco e o negrume do preto, sem meios termos. E nas quais, de
forma que se revela como natural no domínio narrativo, mas que em
termos estéticos surpreende, Cosey consegue passar de um acentuado
realismo para sequências puramente visuais e pictóricas.
Porque
é nessa ambivalência - entre a realidade e o sonho - que respira,
vive e se faz Calipso.
Uma ambivalência que se desenrola entre os desejos perseguidos - e
cumpridos - e aqueles que apenas se sonharam.
Por
isso, a narrativa podia ter como subtítulo “uma história de três
idosos de regresso à adolescência” - Georgia, Gus e Pepe.Georgia
(antes
Georgette) é uma
antiga estrela de Hollywood, vedeta marcante de um único filme - que
dá nome ao livro - em que cumpriu os sonhos de fama e grandeza que,
à saída da adolescência, a levaram a abandonar tudo e todos e a
cruzar o oceano - e no qual o seu papel de sereia fez sonhar os
homens que a viram nadar.Entre eles estava Gus - o seu primeiro e
grande amor - que, abandonado, conformado com a perda, mas sempre
impulsivo, (re)fez - por vezes tumultuosamente - a vida (banal), na
mesma localidade. Entre os seus amigos, encontra-se Pepe, um espanhol
com o sonho de abrir um pequeno restaurante de fondues,
que o destino - ou algo mais? - levou até à Suíça.
O
regresso de Georgia à sua região natal, para (mais) uma
desintoxicação, vai proporcionar o reencontro emotivo dos dois
antigos amantes, mas também reabrir algumas feridas mal
cicatrizadas, que Pepe, à sua maneira, tentará minimizar. Se Cosey
podia ter ficado pela exploração das relações - área em que se
tem revelado mestre, e que mesmo assim é fundamental no desenrolar
do relato - preferiu optar por surpreender o leitor e introduzir uma
derivação narrativa quase surreal. Na sua origem, está a
descoberta de uma situação anómala com a gestão das finanças de
Georgia, e o arquitectar de um plano tresloucado - tipicamente
adolescente, apetece escrever... - que passa por um rapto e um pedido
de resgate.
Ou,
olhando de outro modo, pelo regresso ao sonho e ao trilhar de
caminhos para o perseguir, com o trio a reencontrar a loucura, o
entusiasmo, a ausência de medo e o desprezo pelas consequências,
tão típicos da adolescência.Se este é apenas o ponto de partida,
o final de tons delicodoces, também habituais em Cosey, está
igualmente presente em Calipso
mas, até
lá chegar, o leitor avançará de surpresa em surpresa, com muita
água dos rios a correr para o mar, onde muitas sereias poderão ser
avistadas…
Calipso
Cosey
Levoir/Público
Portugal,
27
de Junho de 2018
240
x 290
mm, 120
p., pb, capa dura
10,90
€
(este
texto é a introdução do livro na colecção Novela Gráfica;
imagens
cedidas pela editora; clicar nelas para as apreciar em toda a sua
extensão)
Uma história bem conseguida conduzida por um dos maiores nomes desta arte que é a nona.
ResponderEliminarAcho que o Cosey já fez melhor...
EliminarBoas leituras!