“As mulheres e as crianças, violadas e
mutiladas à frente das suas famílias. Fazer prisioneiros os homens,
com mais de doze anos. Cortar as mãos aos que resistirem. Queimar os
bebés e os velhos nas suas cabanas, mortos ou vivos”
In Kivu (tradução de As Leituras do Pedro)
Se há muito
Van Hamme anunciou a sua retirada da BD, pelo menos das grandes
séries (XIII,
Thorgall,
Largo Winch...)
que o tornaram - justamente - um dos mais apreciados argumentistas da
chamada ‘banda desenhada de grande aventura’, volta e meia
esquece esse propósito e vai-nos brindando com novas obras.
O título do
álbum é o nome de uma antiga região e província da República
Democrática do Congo, uma espécie de enclave que serve de zona
tampão entre aquele país, o Ruanda e o Uganda, que não são
conhecidos propriamente pela sua estabilidade social e política, bem
pelo contrário.
O Kivu é
igualmente conhecido pela riqueza mineral que existe no seu subsolo,
nomeadamente o coltan
- abreviatura do composto de columbita e tantalita, que é utilizado
no fabrico de smartphones.
Estes
pressupostos - a que se pode acrescentar os muitos ódios tribais
latentes no continente africano - tornam o retrato fácil de traçar:
as grandes multinacionais pagam o que for preciso, a quem lhes
fornecer o minério, fechando
os olhos
aos
métodos utilizados pelos mercenários para o conseguir: corrupção,
trabalho escravo, opressão, violência, barbárie indiscriminada,
violações em massa, mutilações, assassinatos gratuitos…
No centro da
história, está François Daans, um jovem engenheiro de uma
multinacional que utiliza o coltan,
que, a seu pedido, deixa o posto de marketing que ocupa e é enviado
para o terreno, apesar de já ter uma ideia - que descobrirá ser
superficial - do que ocorre no Kivu. A sua missão é encontrar um
substituto para o chefe militar do bando armado que fornece a
multinacional, pois
o anterior foi morto durante
o ataque a uma aldeia. Aldeia de onde era natural Violette Kizongo,
uma adolescente de doze anos que, com o seu irmão de 15 anos,
escapou por milagre ao massacre que vitimou a sua família e os seus
concidadãos, e cujo caminho vai cruzar o de François. A tentativa
de a proteger e recuperar o seu irmão, a descoberta da amplitude e
do horror profundo da situação no terreno, bem superior “aos
exageros da imprensa’ que
conhecia,
os perigos - para um e outro - que isso acarreta, vão ser o fio
condutor de um relato com um forte tom de denúncia, no
qual o protagonista vai tomando cada vez mais consciência da real
situiação no país.
Para contar
esta história, baseada numa
obra do
dr. Denis Mukwege (com uma breve aparição no livro), médico
natural da região, responsável por um hospital especializado em
cirurgia ginecológica reconstrutiva por laparoscopia, Jean Van Hamme
optou por um registo clássico: em Kivu
os bons são bons, simpáticos e disponíveis, e os maus, são
intratáveis e piores do que isso. E se a história, com uma forte
carga didática para
situar o leitor -
nem sempre necessária, diga-se em abono da verdade - (quase) não
possui as habituais surpresas e volte-faces que fizeram a fama deste
contador de histórias, recebe desse registo clássico uma força
maior, que torna mais chocante aquilo que transmite.
Do mesmo modo,
a escolha de Christophe Simon, antigo colaborador de Jacques Martin e
seu parceiro no regresso de Corentin,
torna-se evidente. Com um traço clássico, pouco dinâmico, mas
muito realista, por vezes quase fotográfico, Simon, que esteve no
terreno para preparar o álbum, numa experiência que ele considerou
traumática, confere ao relato a veracidade e a credibilidade que
alguns dos horrores expostos poderiam levar o leitor a pensar em
‘liberdades autorais’ em vez de um relato verídico.
Kivu
Jean Van Hamme (argumento)
Christophe Simon (desenho)
Le Lombard
França, 14
de Setembro de 2018
241
mm x 318 mm, 72 p., cor, capa dura
14,99
€
(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as
aproveitar em toda sua extensão)
Quero só ressalvar que
ResponderEliminar“As mulheres e as crianças, violadas e mutiladas à frente das suas famílias. Fazer prisioneiros os homens, com mais de doze anos. Cortar as mãos aos que resistirem. Queimar os bebés e os velhos nas suas cabanas, mortos ou vivos”
não é exclusivo de tribos africanas, tendo infelizmente acontecido em pela europa à relativamente pouco tempo na Bósnia-Herzegovina.
Possivelmente retratado em "Safe area Gorazde" de Joe Sacco (não li o livro).
Este comentário é para aqueles cujas consciências já estava a pensar
"É pá! Isto é coisa lá dos p...!"
Comprei o Maus aqui à uns tempos, mas ainda não ganhei coragem para o ler.
Tal como ainda não tive coragem de ler "Se isto é um homem" de Primo Levi.
Este Kivu... não me parece que o encomende.
Mas quando for a França se der com ele, será muito possivelmente uma aquisição.
Mesmo que depois demore a ter coragem de o ler.
Jean van hamme é sinônimo de qualidade e ao longo da sua carreira já o demonstrou mais de uma vez. Caso seja editado em português é compra certa, caso contrário irei compra-lo na França. Só espero que com a idade consiga ser o génio que nos Habituou, pois muitas das suas obras vão permanecer cultas e bem superior a alguns artistas atuais.
ResponderEliminar.
Muito bem vindo