21/09/2018

Kivu

Reportar o horror

As mulheres e as crianças, violadas e mutiladas à frente das suas famílias. Fazer prisioneiros os homens, com mais de doze anos. Cortar as mãos aos que resistirem. Queimar os bebés e os velhos nas suas cabanas, mortos ou vivos”
In Kivu (tradução de As Leituras do Pedro)

Se há muito Van Hamme anunciou a sua retirada da BD, pelo menos das grandes séries (XIII, Thorgall, Largo Winch...) que o tornaram - justamente - um dos mais apreciados argumentistas da chamada ‘banda desenhada de grande aventura’, volta e meia esquece esse propósito e vai-nos brindando com novas obras.
Kivu, acabado de lançar em França, marca a sua estreia - aos 80 anos! - no género BD reportagem.
O título do álbum é o nome de uma antiga região e província da República Democrática do Congo, uma espécie de enclave que serve de zona tampão entre aquele país, o Ruanda e o Uganda, que não são conhecidos propriamente pela sua estabilidade social e política, bem pelo contrário.
O Kivu é igualmente conhecido pela riqueza mineral que existe no seu subsolo, nomeadamente o coltan - abreviatura do composto de columbita e tantalita, que é utilizado no fabrico de smartphones.
Estes pressupostos - a que se pode acrescentar os muitos ódios tribais latentes no continente africano - tornam o retrato fácil de traçar: as grandes multinacionais pagam o que for preciso, a quem lhes fornecer o minério, fechando os olhos aos métodos utilizados pelos mercenários para o conseguir: corrupção, trabalho escravo, opressão, violência, barbárie indiscriminada, violações em massa, mutilações, assassinatos gratuitos…
No centro da história, está François Daans, um jovem engenheiro de uma multinacional que utiliza o coltan, que, a seu pedido, deixa o posto de marketing que ocupa e é enviado para o terreno, apesar de já ter uma ideia - que descobrirá ser superficial - do que ocorre no Kivu. A sua missão é encontrar um substituto para o chefe militar do bando armado que fornece a multinacional, pois o anterior foi morto durante o ataque a uma aldeia. Aldeia de onde era natural Violette Kizongo, uma adolescente de doze anos que, com o seu irmão de 15 anos, escapou por milagre ao massacre que vitimou a sua família e os seus concidadãos, e cujo caminho vai cruzar o de François. A tentativa de a proteger e recuperar o seu irmão, a descoberta da amplitude e do horror profundo da situação no terreno, bem superior “aos exageros da imprensa’ que conhecia, os perigos - para um e outro - que isso acarreta, vão ser o fio condutor de um relato com um forte tom de denúncia, no qual o protagonista vai tomando cada vez mais consciência da real situiação no país.
Para contar esta história, baseada numa obra do dr. Denis Mukwege (com uma breve aparição no livro), médico natural da região, responsável por um hospital especializado em cirurgia ginecológica reconstrutiva por laparoscopia, Jean Van Hamme optou por um registo clássico: em Kivu os bons são bons, simpáticos e disponíveis, e os maus, são intratáveis e piores do que isso. E se a história, com uma forte carga didática para situar o leitor - nem sempre necessária, diga-se em abono da verdade - (quase) não possui as habituais surpresas e volte-faces que fizeram a fama deste contador de histórias, recebe desse registo clássico uma força maior, que torna mais chocante aquilo que transmite.
Do mesmo modo, a escolha de Christophe Simon, antigo colaborador de Jacques Martin e seu parceiro no regresso de Corentin, torna-se evidente. Com um traço clássico, pouco dinâmico, mas muito realista, por vezes quase fotográfico, Simon, que esteve no terreno para preparar o álbum, numa experiência que ele considerou traumática, confere ao relato a veracidade e a credibilidade que alguns dos horrores expostos poderiam levar o leitor a pensar em ‘liberdades autorais’ em vez de um relato verídico.

Kivu
Jean Van Hamme (argumento)
Christophe Simon (desenho)
Le Lombard
França, 14 de Setembro de 2018
241 mm x 318 mm, 72 p., cor, capa dura
14,99 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda sua extensão)

2 comentários:

  1. Quero só ressalvar que
    “As mulheres e as crianças, violadas e mutiladas à frente das suas famílias. Fazer prisioneiros os homens, com mais de doze anos. Cortar as mãos aos que resistirem. Queimar os bebés e os velhos nas suas cabanas, mortos ou vivos”
    não é exclusivo de tribos africanas, tendo infelizmente acontecido em pela europa à relativamente pouco tempo na Bósnia-Herzegovina.
    Possivelmente retratado em "Safe area Gorazde" de Joe Sacco (não li o livro).

    Este comentário é para aqueles cujas consciências já estava a pensar
    "É pá! Isto é coisa lá dos p...!"

    Comprei o Maus aqui à uns tempos, mas ainda não ganhei coragem para o ler.
    Tal como ainda não tive coragem de ler "Se isto é um homem" de Primo Levi.

    Este Kivu... não me parece que o encomende.
    Mas quando for a França se der com ele, será muito possivelmente uma aquisição.
    Mesmo que depois demore a ter coragem de o ler.

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  2. Jean van hamme é sinônimo de qualidade e ao longo da sua carreira já o demonstrou mais de uma vez. Caso seja editado em português é compra certa, caso contrário irei compra-lo na França. Só espero que com a idade consiga ser o génio que nos Habituou, pois muitas das suas obras vão permanecer cultas e bem superior a alguns artistas atuais.
    .
    Muito bem vindo

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