02/11/2018

Marcelo D’Salete: “Ser autor de histórias em quadrinhos faz parte da paixão por um meio artístico que eu considero ter um potencial imenso”




Chama-se Marcelo D’Salete, é brasileiro e é um dos convidados deste fim-de-semana - 3 e 4 de Novembro - do Amadora BD, onde a Polvo vai lançar a edição nacional de Angola Janga.
É o segundo livro do autor, depois de Cumbe, cuja versão norte-americana lhe valeu este ano um Eisner para Melhor Edição Americana de Material Estrangeiro.
Na entrevista que se segue, as questões foram colocadas por escrito e as respostas transcritas a partir de um registo áudio enviado pelo autor.

As Leituras do Pedro - Quem é o Marcelo D’Salete?
Marcelo D’Salete - Sou de São Paulo, nasci em 1979 e morei grande parte da minha infância na periferia da cidade de São Paulo, um jovem negro na periferia de uma grande cidade. Estudei sempre em escolas públicas, no ensino médio fiz um curso de Design Gráfico e, depois disso, Artes Plásticas. Formei-me nesta área e fiz um mestrado em História da Arte.

As Leituras do Pedro - Porque se tornou autor de histórias em quadrinhos?
Marcelo D’Salete - Quadrinhos era uma paixão antiga. Sempre li quadrinhos, aprendi a ler a partir deles e quando tinha cerca de 15 anos decidi que iria trabalhar com histórias em quadrinhos.
Não tinha artistas na família, por isso sempre trabalhei noutras áreas, não só com quadrinhos mas também ilustração. Quadrinhos é uma parte grande da minha renda hoje em dia.
Ser autor de histórias em quadrinhos faz parte dessa paixão inicial por um meio artístico que eu considero ter um potencial imenso e é uma área extremamente interessante para se produzir.

As Leituras do Pedro - Quais as suas influências?
Marcelo D’Salete - Tenho muitas influências para além dos quadrinhos, de outras artes, como a música e um pouco da literatura e do cinema e acho que a minha obra, de certo modo, acaba sendo uma junção, uma confluência a partir de todas essas referências.

As Leituras do Pedro - O seu primeiro livro publicado em Portugal, pela Polvo, foi Cumbe, que reúne quatro narrativas sobre a resistência dos escravos durante o período colonial no Brasil. Porquê a escolha deste tema?
Marcelo D’Salete - Cumbe, que foi publicado em 2015 em Portugal [pela Polvo], foi publicado inicialmente no Brasil, em 2014.
A palavra ‘cumbe’ faz referência a uma palavra de origem do quibundo, que significa ‘luz, sol, fogo, chama, força’. É uma palavra com origem em etnias da região de Angola, que tiveram uma influência muito grande também no Brasil. Muitas das pessoas que vieram de lá para cá, vieram da região de Angola, principalmente nos dois primeiros séculos do Brasil.
Escolhi esse tema porque ainda hoje são poucas as histórias em quadrinhos sobre o período colonial. Há poucas histórias que tratam esses personagens negros como protagonistas. A escolha veio um pouco por causa disso, na sequência de uma pesquisa muito extensa sobre o Brasil colonial, sobre essas histórias e, enfim, de uma necessidade de tentar tratar esse tema através de um meio pelo qual tenho muito apreço, os quadrinhos.

As Leituras do Pedro - A sua abordagem sobre a forma de HQ torna-o mais acessível aos leitores?
Marcelo D’Salete - Os quadrinhos não são uma forma mais fácil de falar de certas coisas. Considero que são um outro modo de fazer narrativas, de trazer experiências para o leitor de hoje. É uma leitura complexa, tão complexa como outras, e tem a potencialidade de tratar de diferentes temas e de comunicar com diferentes públicos, desde crianças, jovens, até adultos ou idosos.

As Leituras do Pedro - Cumbe foi distinguido há poucos meses com o Eisner para Melhor Edição Americana de Material Estrangeiro. Que significou essa distinção para si?
Marcelo D’Salete - Receber um Eisner foi uma surpresa muito grande, que não imaginava que podia acontecer. Um prémio como o Eisner acaba por chamar mais a atenção para a produção de quadrinhos no Brasil, para mais sendo editado [nos EUA] por uma editora de renome como a Fantagraphics, em termos de diversidade de títulos, em diversidade de estilos, em diversidade estética, com autores do mundo todo. É um espaço, uma editora muito interessante para publicar um material como este, que dialoga com a História do Brasil, com a Europa, com Portugal, com a diáspora africana na América e no mundo como um todo.

As Leituras do Pedro - O prémio aumentou a sua visibilidade no Brasil enquanto autor, fez aumentar as vendas de Cumbe?
Marcelo D’Salete - Sim, com certeza. Mas mesmo antes do prémio no Brasil o livro já tinha provocado um efeito muito grande. O Eisner é um prémio reconhecido mundialmente e teve uma grande projecção no Brasil, e afectou, sim, a questão das vendas, e afectou, sim, a minha circulação por aqui. O livro já deve ir na sua 4.ª ou 5.ª edição no Brasil, já foram impressos mais de 7000 exemplares e vendidos boa parte deles. Já foi distribuído em bibliotecas brasileiras e, tanto Cumbe como Angola Janga, foram seleccionados para que no próximo ano cheguem a escolas públicas de todo o Brasil.
Acredito que isso tudo aconteceu porque o Eisner chamou a atenção.

As Leituras do Pedro - Uma das discussões que há neste momento em Portugal, tem a ver com um relatório do Conselho da Europa que quer modificar a forma como a História é ensinada na escola, por achar que questões como as Descobertas, a escravatura e o colonialismo podem afectar os jovens de hoje e levá-los a ter atitudes discriminatórias ou racistas. Como autor que tem abordado estas temáticas, que opinião tem sobre esta sugestão?
Marcelo D’Salete - No Brasil, existe uma discussão no seio da educação, sobre como se deve trabalhar com narrativas pós-coloniais, tentando desconstruir o imaginário colonial que ainda existe. Isso depende, claro, de uma mudança profunda, depende de outra forma de lidar com o ensino, por parte dos professores, da instituição escolar como um todo, pais, alunos… enfim, afecta todos.
Penso que construir essas outras narrativas é importante para que haja, de facto, cidadãos concorrendo, discutindo com igualdade, dentro da esfera pública. Quando isso não existe, há um reforço de uma condição desigual, de narrativas que repercutem na esfera pública e no espaço democrático. Acabamos por criar sub-cidadanias, acabamos por fazer com que muitas pessoas, negras ou de outros grupos, acabem por não ter acesso a postos de poder ou outros postos, devido à forma como esse grupo é visto ou representado na sociedade.
Para contrapor a essas narrativas oficiais e, muitas vezes, baseadas ainda em narrativas nacionais é importante que se construa uma forma de representação mais complexa e mais interessante para os dias de hoje.

As Leituras do Pedro - Agora, depois de Cumbe, a Polvo edita em Portugal Angola Janga, já distinguido com diversos troféus HQ Mix. De que trata este livro?
Marcelo D’Salete - Angola Janga é um livro que trata do Brasil colonial do século XVII. O contexto, a época, é muito semelhante ao de Cumbe.
No caso de Angola Janga, trata especificamente de uma batalha muito relevante para o Brasil do século XVII, que foi o Quilombo dos Palmares, que era uma reunião de diversos quilombos na antiga capitania de Pernambuco, no nordeste brasileiro.
O livro trata das últimas décadas desse conflito, pelo menos dos últimos 50 anos. São 11 capítulos no total, mais de 400 páginas, em que tento destacar algumas das principais lideranças dos quilombos da serra, como Ganga Zumba, Ganga Zona, Zumbi, mas também outras personagens que foram importantes para o conflito, como Henrique Dias, Domingos Jorge Velho e outros. A ideia é que as pessoas conheçam um pouco mais desse contexto, dessa história e desse período e possam compreender um pouco mais sobre o nosso passado e sobre a relação entre esses diversos grupos em conflito.

As Leituras do Pedro - É uma obra de cariz histórico ou uma ficção com a História como pano de fundo?
Marcelo D’Salete - Pensa-se que ‘Angola Janga’, que significa ‘minha Angola’ ou ‘pequena Angola’, era um dos termos utilizados pelos palmaristas para falarem sobre a sua região, que era um conjunto de mocambos na serra, mais de dez mocambos, na Serra da Barrica, na região da antiga Pernambuco do século XVII. É um livro de ficção inspirado em diversos factos históricos e em diversas personagens históricas.

As Leituras do Pedro - Existe alguma relação com o país africano Angola?
Marcelo D’Salete - Há uma relação sim, com o país Angola, porque é uma transposição de diversas experiências, trazidas de Angola e do Congo, para o Brasil, criando quase uma ‘nação’ no interior de Pernambuco, onde viviam mais de 20 mil pessoas. Grande parte delas tinham vindo dos reinos de Angola e do Congo e só mais tarde é que o tráfico se expandiu para outras regiões brasileiras. Muitas dessas pessoas eram de procedência bantu e falantes dos idiomas originais de Angola.

As Leituras do Pedro - Com mais de 400 páginas, este é possivelmente o maior romance gráfico já criado por um autor brasileiro. Porquê uma obra desta dimensão?
Marcelo D’Salete - É um dos maiores livros de quadrinhos já publicados no Brasil, juntamente com O Idiota, do André Diniz. A sua importância não tem a ver com o seu tamanho, com o número de páginas, que poderiam ser ainda mais, mas sim com o tema que trata, com o universo que traz, e considero que a saga dos Palmares é extremamente interessante e poderia ser tratada ainda de forma mais extensa. Quis fazer a narrativa de um ponto de vista bem pessoal e focada nas personagens fictícias e por isso foram necessárias mais páginas para falar de cada um dos intervenientes.
É uma obra que se baseia muito nas imagens, tem pouco texto aliás, embora tenha mais do que Cumbe, mas é uma narrativa feita, em grande parte, a partir da primeira pessoa, da sobrevivência de cada um.

As Leituras do Pedro - Como sugere que os leitores se aproximem da sua obra?
Marcelo D’Salete - Para leitores fora do Brasil talvez seja um pouco mais complexo e difícil de imaginar e compreender esse período. No Brasil do século XVII, os portugueses e os luso-brasileiros avançaram para o interior, em direcção a oeste, a partir da costa, com um grande contingente de africanos escravizados, trazidos à força para o Brasil. Uma parte dessas pessoas fugiram, para o Mocambo dos Palmares e outros mocambos, que eram espaços onde essas pessoas podiam ter maior autonomia sobre as suas vidas, podiam escolher a forma de se organizar, de lidar com a terra, de lidar com as outras pessoas, com os seus iguais. Tinham relações com a população indígena ao redor, relações que hoje se acredita que nalguns momentos seriam de companheirismo mas que, noutros seriam de conflito. Também tinham relações com colonos brancos pobres das proximidades de Palmares, trocavam mantimentos com eles e, pelo números de pessoas que vivia lá, provavelmente concorriam muito com as cidades coloniais.
Para o Brasil colonial, da forma como estava organizado naquele momento, a partir de uma perspectiva colonialista e portuguesa, o Quilombo dos Palmares, assim como outros quilombos, era uma ameaça muito grande para o Brasil colónia. Essa ameaça surgia de diversos modos e também de uma forma de uma organização militar, armada, contra o ataque dos luso-brasileiros que anos após ano iam lá para destruir Palmares e Angola Janga e para re-escravizar aquelas pessoas. E apesar de Palmares ter acabado no final do século XVII, em 1694, quando caiu a principal capital de Palmares, podemos dizer que a sua resistência foi histórica e foi mesmo um sucesso, porque resistiu às investidas dos soldados luso-brasileiros durante mais de 100 anos.

As Leituras do Pedro - Vai estar presente no Amadora BD nos dias 3 e 4 de Novembro. O que espera deste encontro com os seus leitores portugueses?
Marcelo D’Salete - É a primeira vez que vou estar no Amadora BD. É um evento que é muito falado no Brasil. Tenho muito interesse em conhecer o festival e em estar em contacto com o público português. Mais uma vez será um grande prazer poder estabelecer uma discussão em torno destas obras e em torno de outras questões que envolvem a História conjunta do Brasil, Angola e Portugal. Uma História também conflituosa, mas uma História que não podemos esquecer e apartar, pois é a partir do seu conhecimento que conseguiremos estabelecer traços novos pensando no futuro, pensando noutras formas de organização, noutras formas de contacto entre essas diversas culturas e não apenas de uma perspectiva colonialista de séculos atrás.

As Leituras do Pedro - Depois de Cumbe e Angola Janga, qual o seu próximo projecto?
Marcelo D’Salete - Ainda não tenho nada definido, apenas algumas ideias para o próximo projecto.

(imagens disponibilizadas pela editora Polvo; clicar nelas para as aproveitar em toda sua extensão)

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