Chama-se
Marcelo D’Salete, é brasileiro e é um dos convidados deste
fim-de-semana - 3 e 4 de Novembro - do Amadora BD, onde a Polvo vai
lançar a edição nacional de Angola Janga.
É
o segundo livro do autor, depois de Cumbe, cuja versão
norte-americana lhe valeu este ano um Eisner para Melhor Edição Americana de Material Estrangeiro.
Na entrevista que se segue, as
questões foram colocadas por escrito e as respostas
transcritas a partir de um registo áudio enviado pelo autor.
As
Leituras do Pedro - Quem é o Marcelo D’Salete?
Marcelo
D’Salete - Sou de São Paulo, nasci em 1979 e morei grande
parte da minha infância na periferia da cidade de São Paulo, um
jovem negro na periferia de uma grande cidade. Estudei sempre em
escolas públicas, no ensino médio fiz um curso de Design Gráfico
e, depois disso, Artes Plásticas. Formei-me nesta área e fiz um
mestrado em História da Arte.
As
Leituras do Pedro -
Porque se tornou autor de histórias em quadrinhos?
Não
tinha artistas na família, por isso sempre trabalhei noutras áreas,
não
só com quadrinhos mas também ilustração. Quadrinhos é uma parte
grande da minha renda hoje em dia.
Ser
autor de histórias em quadrinhos faz parte dessa paixão inicial por
um meio artístico que eu considero ter um potencial imenso e é uma
área extremamente interessante para
se produzir.
As
Leituras do Pedro - Quais as suas influências?
Marcelo
D’Salete - Tenho muitas influências para além dos quadrinhos,
de outras artes, como a música e um pouco da literatura e do cinema
e acho que a minha obra, de certo modo, acaba sendo uma junção, uma
confluência a partir de todas essas referências.
As
Leituras do Pedro -
O seu primeiro livro publicado em Portugal, pela Polvo, foi Cumbe,
que reúne quatro narrativas sobre a resistência dos escravos
durante o período colonial no Brasil. Porquê a escolha deste tema?
Marcelo
D’Salete -
Cumbe,
que foi publicado em 2015 em Portugal [pela Polvo], foi publicado
inicialmente no Brasil, em 2014.
A
palavra ‘cumbe’ faz referência a uma palavra de origem do
quibundo, que significa ‘luz, sol, fogo, chama, força’. É uma
palavra com origem em etnias da região de Angola, que
tiveram
uma influência muito grande também no Brasil. Muitas das pessoas
que vieram de lá para cá, vieram da região de Angola,
principalmente nos dois primeiros séculos do Brasil.
Escolhi
esse tema porque ainda hoje são poucas as histórias em quadrinhos
sobre o período colonial. Há poucas histórias que tratam esses
personagens negros como protagonistas. A escolha veio um pouco por
causa disso, na sequência de uma pesquisa muito extensa sobre o
Brasil colonial, sobre essas histórias e, enfim, de uma necessidade
de tentar
tratar
esse tema através de um meio pelo qual tenho muito apreço, os
quadrinhos.
As
Leituras do Pedro - A sua abordagem sobre a forma de HQ torna-o mais
acessível aos leitores?
Marcelo
D’Salete - Os quadrinhos não são uma forma mais fácil de
falar de certas coisas. Considero que são um outro modo de fazer
narrativas, de trazer experiências para o leitor de hoje. É uma
leitura complexa, tão complexa como outras, e tem a potencialidade
de tratar de diferentes temas e de comunicar com diferentes públicos,
desde crianças, jovens, até adultos ou idosos.
As
Leituras do Pedro -
Cumbe
foi
distinguido
há poucos meses com o Eisner para Melhor
Edição Americana de Material Estrangeiro.
Que significou essa distinção para si?
As
Leituras do Pedro - O prémio aumentou a sua visibilidade no Brasil
enquanto autor, fez aumentar as vendas de Cumbe?
Marcelo
D’Salete - Sim, com certeza. Mas mesmo antes do prémio no
Brasil o livro já tinha provocado um efeito muito grande. O Eisner é
um prémio reconhecido mundialmente e teve uma grande projecção no
Brasil, e afectou, sim, a questão das vendas, e afectou, sim, a
minha circulação por aqui. O livro já deve ir na sua 4.ª ou 5.ª
edição no Brasil, já foram impressos mais de 7000 exemplares e
vendidos boa parte deles. Já foi distribuído em bibliotecas
brasileiras e, tanto Cumbe como Angola Janga, foram
seleccionados para que no próximo ano cheguem a escolas públicas de
todo o Brasil.
Acredito
que isso tudo aconteceu porque o Eisner chamou a atenção.
As
Leituras do Pedro -
Uma das discussões que há neste momento em Portugal, tem a ver com
um relatório do Conselho da Europa que quer modificar a forma como a
História é ensinada na escola, por achar que questões como as
Descobertas, a escravatura e o colonialismo podem afectar os jovens
de hoje e levá-los a ter atitudes discriminatórias ou racistas.
Como autor que tem abordado estas temáticas, que opinião tem sobre
esta sugestão?
Marcelo
D’Salete -
No
Brasil, existe uma discussão no seio da educação, sobre como se
deve trabalhar com narrativas pós-coloniais, tentando desconstruir o
imaginário colonial que ainda existe. Isso depende, claro, de uma
mudança profunda, depende de outra forma de lidar com o ensino, por
parte dos professores, da instituição escolar como um todo, pais,
alunos… enfim, afecta todos.
Penso
que construir essas outras narrativas é importante para que haja, de
facto, cidadãos concorrendo,
discutindo com igualdade, dentro da esfera pública. Quando isso não
existe, há um reforço de uma condição desigual, de narrativas que
repercutem na esfera pública e no espaço democrático. Acabamos por
criar sub-cidadanias, acabamos por fazer com que muitas
pessoas, negras ou de outros grupos, acabem por não ter acesso a
postos de poder ou outros postos, devido à forma como esse grupo é
visto ou representado na sociedade.
Para
contrapor a essas narrativas
oficiais e, muitas vezes, baseadas ainda em narrativas nacionais é
importante que se construa uma forma de representação mais complexa
e mais interessante para os dias de hoje.
As
Leituras do Pedro -
Agora, depois de Cumbe,
a Polvo edita em Portugal Angola
Janga,
já distinguido com diversos troféus HQ Mix. De que trata este
livro?
Marcelo
D’Salete -
Angola
Janga
é um livro que trata do Brasil colonial do século XVII. O contexto,
a época, é muito semelhante ao de Cumbe.
No
caso de Angola
Janga,
trata especificamente de uma batalha muito relevante para o Brasil do
século XVII, que foi o Quilombo dos Palmares, que era uma reunião
de diversos quilombos na antiga capitania
de Pernambuco, no nordeste brasileiro.
O
livro trata das últimas décadas desse conflito, pelo menos dos
últimos 50 anos. São 11 capítulos no total, mais de 400 páginas,
em que tento destacar algumas das principais lideranças dos
quilombos da serra, como
Ganga Zumba, Ganga Zona, Zumbi, mas também outras
personagens que
foram importantes
para o conflito, como
Henrique Dias, Domingos Jorge Velho e outros.
A ideia é que as pessoas conheçam um pouco mais desse contexto,
dessa história e desse período e possam compreender um pouco mais
sobre o nosso passado e sobre a relação entre esses diversos grupos
em conflito.
As
Leituras do Pedro -
É uma obra de cariz histórico ou uma ficção com a História como
pano de fundo?
Marcelo
D’Salete -
Pensa-se que ‘Angola Janga’, que significa ‘minha Angola’ ou
‘pequena Angola’, era um dos termos utilizados pelos palmaristas
para falarem sobre a sua região, que era um conjunto de mocambos na
serra, mais de dez mocambos, na Serra
da Barrica, na região
da antiga Pernambuco do século XVII. É um livro de ficção
inspirado em diversos factos históricos e em diversas personagens
históricas.
As
Leituras do Pedro -
Existe alguma relação com o país africano Angola?
Marcelo
D’Salete -
Há
uma relação sim, com o país Angola, porque é uma transposição
de diversas experiências, trazidas de Angola e do Congo, para o
Brasil, criando quase uma ‘nação’ no interior de Pernambuco,
onde viviam mais de 20 mil pessoas. Grande parte delas tinham vindo
dos reinos de Angola e do Congo e só mais tarde é que o tráfico se
expandiu para outras regiões brasileiras. Muitas
dessas pessoas
eram de procedência bantu e falantes dos idiomas originais de
Angola.
As
Leituras do Pedro -
Com mais de 400 páginas, este é possivelmente o maior romance
gráfico já criado por um autor brasileiro. Porquê uma obra desta
dimensão?
Marcelo
D’Salete -
É
um dos maiores livros de quadrinhos já publicados no Brasil,
juntamente com O
Idiota,
do André Diniz. A sua importância não tem a ver com o seu tamanho,
com o número de páginas, que poderiam ser ainda
mais,
mas sim com o tema que trata, com o universo que traz, e considero
que a saga dos
Palmares é extremamente interessante e poderia ser tratada ainda de
forma mais extensa. Quis fazer a narrativa de um ponto de vista bem
pessoal e focada nas personagens fictícias e por isso foram
necessárias mais páginas para falar de cada um dos intervenientes.
É
uma obra que se baseia
muito nas imagens, tem pouco texto aliás,
embora tenha mais do que Cumbe,
mas
é uma narrativa feita, em grande parte, a partir da primeira pessoa,
da sobrevivência de cada um.
As
Leituras do Pedro -
Como sugere que os leitores se aproximem da sua obra?
Marcelo
D’Salete -
Para
leitores fora do Brasil talvez seja um pouco mais complexo e difícil
de imaginar e compreender esse período. No Brasil do século XVII,
os portugueses e os luso-brasileiros avançaram para o interior, em
direcção a oeste,
a partir da costa, com um grande contingente de africanos
escravizados, trazidos à força para o Brasil. Uma parte dessas
pessoas fugiram, para o Mocambo dos
Palmares e outros mocambos, que eram espaços onde essas pessoas
podiam ter maior autonomia sobre as suas vidas, podiam escolher a
forma de se organizar, de lidar com a terra, de lidar com as outras
pessoas, com os seus iguais. Tinham relações com a população
indígena ao redor, relações que hoje
se
acredita que nalguns momentos seriam de companheirismo mas que,
noutros seriam de conflito. Também tinham relações com colonos
brancos pobres das proximidades de
Palmares,
trocavam mantimentos com eles e, pelo números de pessoas que vivia
lá, provavelmente concorriam muito com as cidades coloniais.
Para
o Brasil colonial, da forma como estava organizado naquele momento, a
partir de uma perspectiva colonialista e portuguesa, o Quilombo dos
Palmares, assim como outros quilombos, era uma ameaça muito grande
para o Brasil colónia. Essa ameaça surgia de diversos modos e
também de uma forma de uma organização militar, armada, contra o
ataque dos luso-brasileiros que anos após ano iam lá para destruir
Palmares e Angola Janga e para re-escravizar aquelas pessoas. E
apesar de Palmares ter acabado no final do século XVII, em 1694,
quando caiu a principal capital de Palmares, podemos dizer que a sua
resistência foi histórica e foi mesmo um sucesso, porque resistiu
às investidas dos soldados luso-brasileiros durante mais de 100
anos.
As
Leituras do Pedro -
Vai estar presente no Amadora BD nos dias 3 e 4 de Novembro. O que
espera deste encontro com os seus leitores portugueses?
Marcelo
D’Salete -
É
a primeira vez que vou estar no Amadora BD. É um evento que é muito
falado no Brasil. Tenho muito interesse em conhecer o festival e em
estar em contacto com o público português. Mais uma vez será um
grande prazer poder estabelecer uma discussão em torno destas obras
e em torno de
outras
questões que envolvem a História conjunta do Brasil, Angola e
Portugal. Uma História também conflituosa, mas uma
História que
não podemos esquecer e apartar, pois é a partir do seu conhecimento
que conseguiremos estabelecer traços novos pensando no futuro,
pensando noutras formas de organização, noutras formas de contacto
entre essas diversas culturas e não apenas de uma perspectiva
colonialista de séculos atrás.
As
Leituras do Pedro - Depois de Cumbe e Angola Janga,
qual o seu próximo projecto?
Marcelo
D’Salete - Ainda não tenho nada definido, apenas algumas
ideias para o próximo projecto.
(imagens
disponibilizadas pela editora Polvo; clicar nelas para as aproveitar
em toda sua extensão)
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