21/12/2018

Angola Janga

Difícil mas...

Para quem tem por hábito/gosto/função divulgar e apreciar obras - no (meu) caso de banda desenhada - volta e meia depara-se com livros cuja análise se revela custosa.
Pela proximidade com o autor, pelo medo de (a crítica escrita) não estar à altura da obra lida, pela não afinidade com o tema/estilo, simplesmente porque a obra não tocou/despertou, por um misto de tudo o que atrás ficou...
Angola Janga é uma dessas obras, pelas razões que vou tentar explicar a seguir.

Na maioria desses casos, o caminho mais fácil - envergonhadamente assumido - é optar por uma análise 'à distância', abordando mais o conteúdo - a história - que a forma - a maneira como ela está contada.
No caso de Angola Janga, se a opção fosse essa, diria que é um livro que tem por base o Brasil (colonial) dos séculos XVI/XVII, que narra a criação de comunidades de escravos fugidos, no interior do território, na zona de Pernambuco. Eram os 'palmares', onde os negros, trazidos à força de África (Angola, Congo...) tentavam refazer a sua vida, retornar às suas origens culturais e, acima de tudo, viver em paz.
Como em tantos outros exemplos históricos, esta história de sobrevivência, viria a tornar-se numa história de resistência e revolta, inevitavelmente condenada ao fracasso devido à força e à força dos números daqueles que não podiam admitir o 'desrespeito', o 'desafio', a simples ideia de que negros pudessem querer ser mais do que 'simples escravos'.
Podendo ter dado uma bela história de aventuras - num contexto similar, mas numa abordagem completamente díspar, Tex: Patagónia (que também tem edição portuguesa da Polvo) é um (bom) exemplo disso - Angola Janga, não fugindo aqui e ali - inevitavelmente? - a uma vertente aventurosa e de alguma acção, vai muito além disso, opta por um outro tipo de aproximação.
[Com o correr da escrita - cujo arranque foi custoso... - a tal 'análise à distância diluiu-se e as impressões, as emoções, as sensações da leitura feita foram-se vertendo naturalmente para estas linhas.]
Parentesis à parte, a tal aproximação referida acima espelha - é só uma sensação, embora apoiada também naquilo que Marcelo D'Salete foi partilhando em entrevistas (como esta) - um grande empenho pessoal nesta história e nesta obra, quase uma urgência de contar - de partilhar - um facto histórico importante na génese da construção do país - multicultural - que hoje conhecemos como Brasil, possivelmente desconhecido de muitos brasileiros. Isso reforça, sem qualquer dúvida, a dimensão humana do relato, em que os intervenientes - os escravos fugidos, em especial os seus líderes, os senhores que os perseguem, os capitães do mato que faziam das perseguições e capturas de escravos fugidos o seu modo de vida, os representantes da igreja (católica, obviamente) nem sempre com espírito cristão - mais do que estereótipos ou intocáveis personagens históricas surgem como seres realmente humanos, com paixões e ódios, desejos e sentimentos, vontades e ambições. O que justifica e sustenta os sonhos de uns, as traições de outros, a ambição, o desejo de vingança pura e simples, a procura da paz...
Mas, afinal, que aspectos tornaram custosa a escrita deste texto? A meu ver, são dois, fundamentalmente.
O primeiro prende-se com a questão do ritmo ou da falta dele. Se há momentos em que é obrigatório parar, pausar, obrigar o leitor a apreciar, a descobrir, a meditar no que lhe é mostrado e contado, noutras cenas, em especial aquelas em que a acção predomina e, por isso, o ritmo deveria aumentar, a opção pela desconstrução do movimento em múltiplas imagens, a eleição de a revelar através de múltiplas tomadas de pontos de vista, tem o feito contrário ao desejado e torna contemplativo o que deveria entrar 'pelos olhos dentro e acelerar o cérebro'.
O segundo aspecto, prende-se com a dificuldade, nalguns momentos, de distinguir e identificar alguns dos protagonistas, o que mais uma vez afecta a fluidez da leitura.
Se estes são aspectos menos conseguidos, não são suficientes para não aconselhar a leitura deste enorme fresco - que teve por base uma acurada pesquisa histórica que transpira na narrativa sem afectar a forma ficcionada como ela é feita nem algumas liberdades criativas que o autor assume - e que pode ser lido independentemente da nacionalidade de cada um, apenas - e que grande 'apenas' é este - como uma história humana de luta pela sobrevivência e pelo direito à auto-determinação - valores, afinal, tão (mediaticamente) em voga hoje em dia...

Angola Janga
Marcelo D'Salete
Polvo
Portugal, Novembro de 2018
160 x 230 mm, 432 p., pb, capa mole com badanas
17,40 €

(clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Tive em parte a mesma reacção que tu, mas não concordo 100% com uma das críticas que fazes ao livro. Eu ia todo preparado para não gostar especialmente dele, é um tipo de BD de 'tese' que às vezes não me interessa especialmente, e não adoro o desenho do D'Salete. Mas não estava preparado para encontrar aquilo que na realidade é mesmo um 'page turner', que nos faz querer continuar a ler.

    A crítica tua com que não concordo tem mesmo a ver com a planificação e as mudanças de ritmo do livro, que eu apreciei muito - e não tinha a noção que o D'Salete fosse tão bom narrador sequencial. Pessoalmente, achei que as pausas que se introduzem na narração são bem-vindas e fortalecem muito a narrativa, porque senão a história e a História tornar-se-iam talvez um pouco mais 'pesadas'. Mas concordo que por vezes não é fácil distinguir algumas das personagens e que isso atrapalha um pouco o fluxo da leitura.

    Dito isto, é uma das GRANDES edições do ano, e devemos também dar os parabéns à polvo por ter conseguido colocar um livro deste ao preço a que está (suponho que em parte devido ao apoio que recebeu para a sua edição, mas que só fica bem ao editor ter retransmitido aos fãs e compradores.

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  2. Quis esperar até ler o livro na totalidade, para comentar. Mas como devido à forma de "comunicação" dos blogs, as coisas vão desaparecendo 'rápidamente' consoante são colocados novos posts, decidi comentar algo já.

    Já li cerca de um terço em duas 'tentativas' de o ler totalmente.

    A dificuldade com as fisionomias das personagens (negras sobretudo) é mesmo uma das coisas que me irrita mais neste livro. A outra é não me conseguir entusiasmar com a história em si e creio ser devido à forma como está a ser contada que não me consegue atrair.

    Mas prontos, o Miracleman (usado apenas como exemplo comparativo) também não me atriu nada e ficou a meio, pelo que este estará em 'boa companhia' até voltar a agarrar neles :-)

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