06/12/2018

Luzes de Niterói

Cronista social




Se há elemento omnipresente na obra de Marcelo Quintanilha, ele é a facilidade (?) com que faz de cada um dos seus romances gráficos mais uma peça de uma enorme crónica social do quotidiano brasileiro.
Pode dar-lhe um tom mais violento e policial, como em Tungsténio; pode usá-lo como pano de fundo para um drama visceral profundamente humano, como Talco de Vidro; pode dar-lhe largas, como acontecia em Sábado dos meus amores, o livro em que o descobri ou - tanto ou mais ainda - neste recém-publicado Luzes de Niterói. Mas, todos eles, são um retrato vivo, sentido, real e realista, de um Brasil, um determinado Brasil, num determinado tempo e época. Por via da experiência do autor ou por interpostas pessoas.
O seu pai, no caso presente, de que este livro denso, em grande parte angustiante, narra umas poucas horas - poucas, mas intensas, muito intensas, por isso, imensas, intermináveis - em dois dias fundamentais da sua vida. A (quase) morte num barco a remos durante uma tempestade, após uma pesca ‘milagrosa’ e a (quase) glória - ou, melhor, a glória que sabemos ser efémera - obtida num relvado, num jogo de futebol.
Mas, mais do que os acontecimento em si, narrados de forma precisa, minuciosa - apetece escrever narrados ao segundo, em segundos longos que parecem horas, levando o leitor a experimentar, primeiro, os efeitos do mergulho, a adrenalina da pesca à mão, o desespero do quase afogamento; depois, a intensidade da chuva, o sal da água, a violência do vento, o balouçar descontrolado da pequena embarcação; noutro contexto, o passe falhado, a finta sofrida, o corte in extremis, a embriaguez do golo - mais do que tudo isto, escrevia eu - e é já tanto! - Quintanilha consegue - tal como tinha feito exemplarmente em Talco de Vidro - fazer-nos entrar na pele, no corpo, na mente de Hélcio, o protagonista, e, dessa forma, sentir, com ele, como ele, a intensidade do desafio, o medo do fim, a raiva contra quem está à mão, a necessidade de explodir, o súbito alívio de quem sente o perigo passado. Atitudes bem humanas, exacerbadas em situações extremas, que acrescentam valor e sinceridade ao todo.
Para, num final, depois de tudo o que aconteceu, surpreendente, qual válvula de escape de tensões acumuladas, resumir mais de duas centenas de pranchas a uma ode à amizade, àquela amizade que, num ápice, por um pequeno nada, como uma pedra a saltar na água ou duas mãos que se agarram, ultrapassa e esquece medos, humilhações, zangas, frustrações e ameaças, para valorizar um sentimento que não tem preço.

Luzes de Niterói
Marcelo Quintanilha
Polvo
Portugal, Novembro de 2018
240 x 170 mm, 232 p., cor, capa mole com badanas
20,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Eu acho que faltou o "perdão" do amigo ao Hélcio. Fica subentendido, mas o trauma provocado foi profundo (devido ao amigo ser como é) e o trauma (as palavras duras) foi mostrado no livro. E creio que o perdão, ou seja a continuidade da amizade que é o grande pano de fundo, deveria também ter ficado espelhada no fim.
    Para "descanso psicológico" do leitor... :-)

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  2. Torna-se imperioso ao ler esta obra, de um dos melhores autores de BD contemporânea, contextualiza-la no tempo / época, e isso para extrair ao máximo a riqueza que o texto nos fornece.
    Sim para os bons amantes da nona arte não vão certamente ficar indiferentes ao ler este rico álbum. Pessoalmente não considero o melhor de M. Quintanilha, mas não deixa de ser um livro que vai enriquecer a prateleira dos mais exigentes.

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