Se há elemento omnipresente na obra de Marcelo Quintanilha, ele é a
facilidade (?) com que faz de cada um dos seus romances gráficos
mais uma peça de uma enorme crónica social do quotidiano
brasileiro.
Pode dar-lhe um tom mais violento e
policial, como em Tungsténio;
pode usá-lo como pano de fundo para um drama visceral profundamente
humano, como Talco
de Vidro;
pode dar-lhe largas, como acontecia em Sábado
dos meus amores,
o livro em que o descobri ou - tanto ou mais ainda - neste
recém-publicado
Luzes de Niterói.
Mas, todos eles, são um retrato vivo, sentido, real e realista, de
um Brasil, um determinado Brasil, num determinado tempo e época. Por
via da experiência do autor ou por interpostas pessoas.
O seu pai, no caso presente, de que
este livro denso, em grande parte angustiante, narra umas poucas
horas - poucas, mas intensas, muito
intensas, por isso, imensas,
intermináveis
- em dois dias fundamentais da sua vida. A (quase) morte num barco a
remos durante uma tempestade, após uma pesca ‘milagrosa’ e a
(quase) glória - ou, melhor, a glória que sabemos ser efémera -
obtida num relvado, num jogo de futebol.
Mas, mais do que os acontecimento
em si, narrados de forma precisa, minuciosa - apetece escrever
narrados ao segundo, em
segundos longos que parecem horas, levando
o leitor a experimentar, primeiro, os efeitos do mergulho, a
adrenalina da pesca à mão, o desespero do quase afogamento; depois,
a intensidade da chuva, o sal da água, a violência do vento, o
balouçar descontrolado da pequena embarcação; noutro contexto, o
passe falhado, a finta sofrida, o corte in
extremis,
a embriaguez do golo - mais do que tudo isto, escrevia eu - e é já
tanto! - Quintanilha consegue - tal como tinha feito exemplarmente em
Talco de Vidro
- fazer-nos entrar na pele, no corpo, na mente de Hélcio, o
protagonista, e, dessa forma, sentir, com ele, como ele, a
intensidade do desafio, o medo do fim, a raiva contra quem está à
mão, a necessidade de explodir, o súbito alívio de quem sente o
perigo passado. Atitudes bem humanas, exacerbadas
em situações extremas, que acrescentam valor e sinceridade ao todo.
Para,
num final, depois de tudo o que
aconteceu,
surpreendente, qual válvula de escape de tensões acumuladas,
resumir mais
de duas centenas de pranchas a uma
ode à amizade, àquela amizade que, num ápice, por um pequeno nada,
como uma pedra a saltar na água ou duas mãos que se agarram,
ultrapassa e esquece medos, humilhações, zangas, frustrações e
ameaças, para valorizar um sentimento que não tem preço.
Luzes de Niterói
Marcelo Quintanilha
Polvo
Portugal, Novembro de 2018
240 x 170 mm, 232 p., cor, capa mole com badanas
20,00 €
(imagens
disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as apreciar em toda
a sua extensão)
Eu acho que faltou o "perdão" do amigo ao Hélcio. Fica subentendido, mas o trauma provocado foi profundo (devido ao amigo ser como é) e o trauma (as palavras duras) foi mostrado no livro. E creio que o perdão, ou seja a continuidade da amizade que é o grande pano de fundo, deveria também ter ficado espelhada no fim.
ResponderEliminarPara "descanso psicológico" do leitor... :-)
Torna-se imperioso ao ler esta obra, de um dos melhores autores de BD contemporânea, contextualiza-la no tempo / época, e isso para extrair ao máximo a riqueza que o texto nos fornece.
ResponderEliminarSim para os bons amantes da nona arte não vão certamente ficar indiferentes ao ler este rico álbum. Pessoalmente não considero o melhor de M. Quintanilha, mas não deixa de ser um livro que vai enriquecer a prateleira dos mais exigentes.