22/03/2019

Batman: Noel, um conto de Natal

O Morcego, Dickens e o Natal



É sabido que nalguns casos, nas histórias de super-heróis - e não só... - o texto era escrito após a arte estar concluída. A leitura deste Batman: Noel, quinto volume da colecção que a Levoir e o Público estão a dedicar aos 80 anos do Homem-Morcego, evocou em mim essa forma de trabalhar...
Já aí vem a explicação, mas antes um pequeno resumo: a tentar capturar o Joker pela enésima vez, o Batman decide seguir um delinquente de segunda categoria que trabalha pare ele, para assim tentar chegar ao seu arqui-inimigo. Pormenor não displicente: a história decorre no período natalício e Bob, o delinquente em questão, tem um filho pequeno.
E agora, vamos então ao texto depois do desenho ou, mais especificamente neste caso, à sobreposição de um texto específico ao desenho.
Noel, um conto de Natal funciona a dois níveis - ou a três, se preferirem que seja mais perfeccionista.
Comecemos pela 'leitura gráfica' - e arrepio-me um pouco ao escrever isto, embora no caso presente até seja ajustado. A planificação é feita quase toda à base de painéis de página inteira, o que poderia levar alguns a considerar Noel numa obra quase a meio caminho entre a ilustração e a banda desenhada propriamente dita, embora me pareça inegável que existe uma sequência narrativa que de algum modo invalida esta ideia. Essa sequência narrativa deste (verdadeiro) conto natalício, torna evidente que a 'dispensa' do texto escrito, não invalidasse a percepção do relato. Haveria algumas interacções de mais difícil interpretação, mas a ideia global seria de fácil apreensão.
A segunda leitura, será feita apenas ao nível do texto escrito. Trata-se de uma versão simplificada e adaptada do celebrado Um Conto de Natal, de Charles Dickens, publicado originalmente em 1843, e inúmeras vezes republicado e recontado com recurso a outros meios narrativos: cinema, teatro, TV, BD... A história é conhecida, mas relembro-a aqui: numa noite de Natal, um velho avarento é visitado por três espíritos - o passado, o presente e o futuro - que questionam a sua forma de estar e agir e lhe mostram onde isso o conduzirá, levando-o a repensar a sua atitude para com os outros.
E a pergunta é inevitável: mas afinal, que tem a ver o clássico de Dickens com o Batman e o Joker?
A terceira leitura - a única que na verdade deverá existir, da banda desenhada propriamente dita, como um todo indivisível - dá a resposta: a aposição do texto escrito, maioritariamente narrativo, aos desenhos, transforma a (aparentemente só) história de super-heróis em algo mais, numa reflexão sobre a forma de ser e de estar do Batman/Bruce Wayne.
Sem querer adiantar muito mais, porque para além do carácter experimental do relato, ele justifica a leitura, tenho de referir a substituição do trio de espíritos por outros super-heróis - mais palpáveis e reais para o protagonista. E vincar como o estilo escolhido, próximo da ilustração mais convencional, realista, clássica até, de época, dá o toque final para fazer de uma história de Batman, Um Conto de Natal.


Batman Noel, um conto de Natal
Colecção Batman 80 Anos
Lee Bermejo
Levoir/Público
Portugal, 21 de Março de 2019
170 x 257 mm, 104 p., cor, capa dura
11,90 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

5 comentários:

  1. Pedro,
    ao longo dos anos esse mito do famoso Marvel Style está a cair por terra. Isso era a forma do Stan Lee continuar a dizer que ele fazia tudo.

    Na exposição do Kirby, em página supostamente escritas com o Marvel Style, em que o Kirby só recebia um resuminho e fazia as páginas, o Kirby deixava montes de textos com a história para o Stan Lee seguir.

    Muitas das vezes eram ignorados o que levou o Kirby a deixar de fazer conceitos novos depois do FF 60 (ou algo semelhante).

    Os livros que ganharam a fama de terem sido escritos assim, são bons demais para ter sido possível. Isso foi a maneira do Stan Lee se vender e se tornar na mascote da Marvel.

    Para terminar, está sabido que o Kirby criou cerca de 90% dos conceitos. Portanto...

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    1. Fernando, sendo ou não mito, está no meu imaginário - e o no de muitos - e a leitura deste Batman fez-me recordá-lo...
      E se o Stan Lee é o caso mais 'mediático', já li sobre outras referências similares na BD franco-belga e até na portuguesa. Nesses casos, estou convencido que mesmo que não houvesse diálogos escritos à partida, havia sempre uma base de partida sólida em termos narrativos, que permitia a escrita dos diálogos à posteriori sem grandes problemas...
      Boas leituras!

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    2. Outros casos não sei, mas no caso específico da Marvel, sei que o Kirby no fundo era uma argumentista. O Stan Lee na Saga do Galactus reuniu-se com ele e disse-lhe que estava na altura de criar um desafio maior que o Mundo.

      Então combinaram que iria ser uma criatura que iria dar um tempo para a Terra se safar e depois atacava.
      Quando o Lee viu as pranchas finalizadas, perguntou: mas que raio é este tipo em cima desta coisa voadora. E o Kirby disse-lhe que era o Surfista Prateado, exclamando: "Não seria o próprio a vir dar o ultimato à Terra, seria um heraldo dele.".

      Sei desses casos que te referes. É natural que isso aconteça, mas em meios mais profissionais que o Português (digo profissionais em termos de viver-se disso), mas esse método está muito mais dependente do artista que o argumentista.

      Em Portugal, na minha modesta opinião e conhecimento, a única pessoa a que darias uma sinopse e ela te dava um trabalho superlativo, é o Osvaldo Medina.

      O caso do Elixir por exemplo, ele tinha o nº de beats por página (vinhetas) e depois ilustrava, sendo a opinião dele mais forte que a minha, porque ele é melhor que eu nessa arte.

      No caso, desse livro tinha de ser assim porque o livro tem para aí uma centena de referências, easter eggs e citações da obra do Sérgio Godinho.

      E temos uma boa obra e foi escrita assim, então é fazer a vénia ao artista.

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  2. Correcção ao post anterior:

    Última frase: e se temos uma boa obra feita neste processo de argumentista mete os textos no fim, temos de fazer uma vénia ao artista.

    Já agora, como curiosidade: o Lee Bermejo está agora a lançar o Batman Dammed e curiosamente está novamente a apostar neste estilo. Curiosamente com um guião do Azzarello a coisa não acho que esteja a funcionar bem.

    A diminuir a separação de vinhetas e a escrever o texto todo desta forma, ainda fica mais estrano que neste. Por um lado as personagens dizem coisas complexas e que devem ser bem percebidas, por outro lado o estilo de legendagem meio narrativa... O livro é estranho.

    Abraço e boas leituras.

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  3. O "Damned" está estranho porque os manda-chuvas na DC estão constantemente a sabotar a obra, não é culpa do escritor nem do artista, ambos já deram provas que trabalham de maneira excelente juntos.

    O "Damned" ia inaugurar uma linha mais madura e dark na DC mas depois do problema do Bat-Penis e da revolta doa falsos puritanos na América os editores sentiram-se obrigados a rever os planos o que implicou constantes reescritas e redesenho, tanto assim é que o número 3 vai tardar a chegar.

    Esta é uma obra sabotada à partida e é pena pois prometia e pelo que já li, o escritor e o artista estão saturados da situação, iam ter mais liberdade depois disseram-lhes que já não podia ser assim e assado, claro que está estranho e ao mesmo tempo teem de cumprir prazos.

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