11/03/2019

Southern Bastards #4: Tê-los no sítio

O futebol como política e religião

"Southern Bastards" - em edição portuguesa apesar do título - é uma série de BD como há poucas.
Retrato duro e violento de uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos, é uma história sobre ódios antigos mantidos em lume brando e despertados, recordados, revividos, reatados com a chegada de Earl Tubbs ao condado de Craw, um lugar miserável e desprezível, de que nem sequer os habitantes gostam.
Assistimos a esse regresso - e ao caos que provocou - no primeiro volume e, nele, ficamos surpreendidos com o desfecho que afastava do relato aquele que parecia fadado para ser o seu protagonista.
No centro da história, afinal, embora pudesse não parecer no início, estava Coach Boss, o treinador da equipa de futebol (americano) local, que dessa posição controlava, comandava e vigiava toda a vida da sua cidadezinha, da polícia aos políticos, dos mais jovens aos mais idosos, daqueles que tinham aspirações aos simples paus-mandados.
Descobrimo-lo no segundo e terceiro volumes, em que a sua história de fracasso seguida de ascensão até ao topo, como personagem maior do futebol local, quase endeusado, se foi entrecruzando com a de outras dos protagonistas cujo percurso, consoante se uniam ou opunham - mesmo que involuntariamente - a ele, crescia ou se tornava em menos de nada, perante a indiferença dos outros.
Com um clima de terror latente, instituído à base de uma violência visceral, ancestral, que evoca o racismo de tempos idos (ou não) e corta aspirações - quase literalmente as pernas - dos jovens que aspiram a mais, o Coach Boss cresceu, assumiu papel de estrela e quase deus, sendo idolatrado ao conduzir - quase sempre - a sua equipa ao único resultado que existe no futebol: a vitória sobre os adversários. A vitória limpa, apesar de todos os podres que tem na cadastro. A vitória no campo, apenas porque os seus atletas são os melhores ou os que estão mais motivados ou os que dão mais de si - porque ele é o melhor treinador.
Mas quando as histórias antigas e alguns ódios sem sentido voltam ao de cima, os seus meios violentos passam a servir também os adversários, tudo aquilo que ele construiu é posto em causa e ele próprio sente seu lugar ameaçado, num último acto de desespero, numa perspectiva de fuga para a frente, em direcção ao abismo que se abre perante ele, vê como única solução usar no futebol que ama (e respeita) os métodos que lhe granjearam a sua posição no condado de Craw. É então - só então - que a queda se torna iminente, pois atingiu o ponto mais baixo - e inaceitável - do seu próprio código de conduta (i)moral. E apesar do que (se) chega a temer, a vingança pára antes do final (que chega a parecer inevitável), optando pelo aviltamento e exposição do fracasso.
Se ao longo destes (primeiros) quatro volumes - que dão agora sentido a cada um deles e que, de alguma forma, encerram um ciclo, mas deixam tudo em aberto para um futuro ainda incerto, pois os autores ainda não iniciaram o que está para vir - a série arrancou centrada em Earl Tubbs e direccionou de seguida o seu rumo para nos apresentar o Coach Boss em todo o seu (falso) esplendor, ao longo deles fomos também descobrindo o melhor (pouco) e o pior (muito) de vários dos habitantes locais e, através das suas vidas, descobrindo um retrato mais amplo de um lugar abjecto que, apesar dos excessos óbvios - ou nem tanto? - talvez não esteja assim tão distante de muitas das nossas vivências. Mesmo tendo em conta que nelas a crueza de Southern Bastards é substituída pelas subtis hipocrisias que, cá como lá, fazem com que a política, as autoridades - a religião - se submetam aos jogos - ao circo mediático - que alimentam a populaça e a mantêm distraída do que realmente devia importar.

Southern Bastards
Volume 4: Tê-los no sítio
Reúne os números #15 a #20 de Southern Bastards
Jason Aaron (argumento)
Jason Latour (desenho)
G. Floy
Portugal, Dezembro de 2018
175 x 260 mm, 168 p., cor, capa dura
ISBN: 978-84-16510-18-4
PVP: 16,00

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Março de 2019)

Sem comentários:

Enviar um comentário